No verão de 1982 fui passar férias a Lisboa, a casa da tia Ana.
– Não te portes mal, vê lá se tens juízo, deixa sempre tudo bem arrumado, quando tomares banho lava-me bem essas orelhas, obedece aos teus Tios, nunca saias sozinho para a rua, vai sempre com os teus primos, e . . .
A minha mãe dava-me todas estas recomendações ao mesmo tempo que, corria da mala, aberta em cima da cama, para o guarda-vestidos, e vice-versa (…)
A minha mãe reforçou uma vez mais as recomendações quando eu estava já no segundo degrau da entrada do autocarro, enquanto o motorista, pacientemente, com um sorriso a esboçar-se dos lábios, esperava que ela terminasse o sermão.
– Quando chegares a Lisboa o tio Zé vai estar à tua espera no terminal das camionetas.
Fui-lhe dizendo adeus já dentro do autocarro, com o nariz quase colado ao vidro, e à medida que o veículo se movia, ela desapareceu da minha vista, para dar lugar aos prédios que se moviam a toda a pressa em sentido contrário, enquanto o motorista ia ganhando velocidade.
Quando o autocarro chegou a Lisboa ao fim do dia, já as luzes da cidade iluminavam as ruas, onde dezenas e dezenas de carros circulavam de um lado para o outro, como quem vai apressado sem destino para onde ir.
Mas a pressa deles não se percebia pela velocidade, que essa, em muitos casos, e em muitos sítios, era feita a passo de caracol.
Não, a pressa de quem parecia correr em marcha lenta, para lado nenhum, percebia-se pelas buzinadelas impacientes, pelos murros no volante, pelos motoristas que perdiam a paciência e baixavam o vidro do carro para gritar.
– Toca a mexer ó parvalhão de merda.
E para reforçar a fúria com que o grito lhes saía da garganta quase com paixão, davam uma buzinadela prolongada, quase com vontade de deixar lá a mão até que o caminho ficasse livre, pelo protesto.
Era um nunca acabar de ruas repletas de pessoas a circular de um lado para o outro, nas suas correrias, dando encontrões, mas sem tempo de pedir desculpa, sempre rodeados de mais pessoas, mas com um ar de quem está apesar de tudo, tão só.
Depois eram os prédios, os jardins, os cafés, os restaurantes, as esplanadas, o metro, meu Deus, como eu achava tudo aquilo maravilhoso, eletrizante.
Para quem vinha da terrinha, como eu, todo este movimento, todas estas luzes a cintilar por toda a cidade, deixavam-me fascinado, quase boquiaberto.
No parque Eduardo Sétimo, lá estava o tio Zé, tal como combinado.
A primeira semana em casa dos tios foi para ir à praia da Costa da Caparica, com os primos.
A diversão começava no dia anterior, quando a tia Ana nos preparava algumas sanduíches para levarmos connosco, uma vez que a intenção era a de passarmos o dia na praia.
– Estas aqui são de queijo e fiambre, e estas embrulhadas no guardanapo com flores, são as de ovos mexidos.
As de ovos mexidos eram as minhas preferidas.
Às vezes, mesmo da sala, com a televisão ligada, o tio Zé a dividir as notícias entre o jornal e um olhar esguio no aparelho, e o João a contar-me algumas das suas aventuras, eu conseguia ouvir a tia Ana na cozinha a partir os ovos, para logo de seguida o barulho deles a cair na frigideira, me aguçarem o apetite.
– Vê lá se amanhã antes de saírem, não se esquecem de meter a garrafa de água que está no frigorifico, dentro do saco.
Ouvia eu a tia Ana a dizer à Paulinha, que era quem ficava responsável pelo lanche, muito embora, às vezes, tanto eu como o primo João lhe tirávamos o saco que ela trazia a tiracolo, para a aliviar por um bocado, do peso.
– Não é preciso, não é assim tão pesado.
Dizia ela quando não queria largar o saco, segurando-o com força na alça, para que desistíssemos de insistir.
Nunca saiamos de manhã cedinho, tal como ficava combinado no dia anterior.
Havia sempre um pelejar entre a vontade de ir para a praia, e a preguiça matinal. E embora, devido a essa batalha entre as duas forças, ninguém ficasse a ganhar, acabávamos sempre por nos levantarmos um pouco mais tarde do que estava planeado.
Depois, eram aqueles hábitos, que apesar de vermos as horas a passar, não se pode prescindir deles, porque fazem parte da cultura, da maneira de viver que muitas famílias têm. Hábitos como o de não sair de casa sem primeiro tomar o pequeno-almoço.
Não importava que fosse tarde. Não importava que o autocarro das nove e trinta, estivesse de partida. Havia sempre a possibilidade de ir no que partia a seguir.
Porque além desse hábito, ainda íamos com a tia Ana ao café ao cimo da rua João Nascimento Costa, para ela tomar a sua indispensável bica da manhã.
– Vocês lá no norte chamam-lhe cimbalino, não é?
Perguntava-me o senhor do café quando metia a chávena em cima do balcão em frente à minha tia.
– Isso é lá no Porto. Em Felgueiras chamamos-lhe apenas, café.
Respondia eu muito à vontade, embora fosse a primeira vez que eu descobria que no Porto chamavam cimbalino à bica de Lisboa, que era o café de Felgueiras.
Depois seguíamos apressados desde as Olaias até ao Areeiro, para apanharmos o autocarro que nos havia de levar até à Costa da Caparica.
Era quase sempre uma enorme confusão para entrar no autocarro. Discussões, encontrões, palavrões e no fim, acabava por se acomodar toda a gente.
Era raríssimo encontrarmos um lugar sentados.
Um dia a prima Paulinha lembrou-se de juntar aos nossos utensílios da praia, um pequeno aparelho de rádio e cassete, onde metíamos a tocar, “The eye of the Tiger” dos Survivor, algo que deixava o primo João a ferver de raiva e vergonha.
Mais vergonha do que raiva, diga-se em abono da verdade.
– Hê pá, desliguem essa porcaria. Tá todo o mundo a olhar para nós.
Não desligávamos. Às vezes eu aumentava o volume só para o ver a ferver.
A Paulinha segredava-me ao ouvido.
– Olha lá para ele. Até deita fumo pelas orelhas.
E eu divertia-me imenso com estas pequenas coisas, pois eram momentos como estes, que me faziam esquecer, pelo menos por um bocado, as minhas frustrações amorosas em relação à princesa, por quem eu morria de saudades.
António Magalhães
(Confissões de um adicto, excerto do capítulo 2)