De que está à procura ?

Colunistas

Soldadinho de chumbo

Estávamos na hora do almoço. 

O sol impusera-se robustamente pela porta da longa varanda que dava acesso ao corredor, trespassando-o, entrando depois na porta que dava para a minha caserna.

A extensão do seu tentáculo de raio solar não conseguia invadir pouco mais de um metro, ou um metro e meio, da porta para dentro. O resto da caserna era iluminada pela luz natural do dia.

No ar havia um perfume adocicado e suave ao mesmo tempo, que a mim me fazia lembrar o mesmo perfume das rosas de cores diferentes, que o meu pai tinha plantadas no quintal, nas traseiras da casa.

Saiu todo o mundo para a cantina, mas o soldadinho de chumbo ficou sentado na beira da sua cama, a mexer e remexer, numa mochila que segurava entre as pernas.

Raramente olhava para dentro da mochila, enquanto mexia e remexia, o que me fez perceber que ganhava tempo para fazer o que realmente queria, ou tinha, de fazer.

Ah… e chamo-lhe soldadinho de chumbo porque o seu verdadeiro nome é o que menos nos interessa saber neste desabafo.

Mas era um soldado pequeno, magro, com cara de quem é mais velho do que a idade que tem, e a mim, fazia-me lembrar um dos soldadinhos de chumbo, de uma coleção deles que chegou a existir em minha casa quando eu era miúdo.

E era precisamente esse perfume a rosas de várias cores, que eu tinha ainda bem presente na memória de quando brincava com esses soldadinhos de chumbo, quando era pequeno e, perdia horas, em sangrentas batalhas no quintal das traseiras da casa, às vezes camuflado pelas roseiras que me rodeavam.

– Estás com muita fome?

Perguntou o soldadinho de chumbo.

– Que raio de pergunta é essa? – respondi-lhe, – para falar verdade…não, fome talvez não tenha, mas tenho uma enorme vontade de comer.

Ele deixou escapar um sorriso e disse.

– Vou precisar da tua ajuda. Dava-me jeito se fosses comer dez minutos mais tarde.

– Não tem problema se eu for comer mais tarde. Que tipo de ajuda?

Perguntei-lhe, quase adivinhando bem no fundo de mim, o que estaria para vir.

– Vou dar um chuto de heroína e preciso que me apertes o garrote.

Assim que ele me disse isto, o meu coração começou a bater apressadamente, como se eu, sem saber muito bem porquê, ficasse mais acelerado (…)

– Já alguma vez deste um chuto?

De facto, assim que ele tirou a seringa da mochila, a imagem que invadira o meu pensamento, era a do doutor Miranda e do seu consultório de dentista, enquanto a minha mãe lhe dizia.

– Se o senhor doutor não se importasse tirava-lhe já os dois dentes, uma vez que são os dois que precisam ser arrancados.

E o doutor Miranda, segurando a seringa na mão, com uma agulha que aos meus olhos de criança de dez ou doze anos de idade, me parecia enorme e absolutamente terrível e assustadora, a dizer…

– Até lhos arranco todos se for preciso…

Não sei se o doutor Miranda era um sádico que tinha prazer em infligir dor na boca das crianças, mas sei que ele não tirava dentes, arrancava-os e, a partir desse dia eu fiquei com uma autêntica fobia às seringas.

Não haja dúvidas que de certa maneira têm razão aqueles que dizem que Deus tem as suas misteriosas maneiras de fazer as coisas.

Por isso, respondi ao soldadinho de chumbo.

– Não, nunca. Para te falar a verdade tenho uma certa fobia com as seringas.

A mistura que estava na colher ferveu por uns escassos segundos e o soldadinho de chumbo meteu-lhe um pouco de algodão embebendo-a. Depois meteu a agulha pelo algodão para filtrar as impurezas e puxou a mistura para dentro da seringa.

Como já disse, a razão pela qual ele me fazia lembrar um soldadinho de chumbo, não era porque na realidade ele se pareceria com os soldadinhos de chumbo que havia lá por casa quando eu era ainda um miúdo, mas porque era essa a memória que eu tinha deles, ao olhar para ele.

António Magalhães

(Excerto do capítulo 3 de “Desabafos de um adicto”)

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA