Há uns dias falei que uma vez torci um pé e andei com uma perna engessada. Isto levantou alguma curiosidade e passo a esclarecer o que se passou.
Foi numa festa de S. João que era organizada todos os anos em Serpins, Lousã.
Era noite alta, o pessoal estava bem comido e bem bebido, e de repente estava eu com uma corda na mão e resolvi dar uma lição de como fazer um espectáculo a saltar à corda. Salto bem à corda e posso fazer corar de inveja qualquer criança de 6 anos. Aperfeiçoei a técnica durante os treinos de natação, e saltava só com um pé, depois com o outro, para trás, para a frente, a cruzar os braços, etc. Passei grande parte da minha adolescência neste passatempo sem sentido. Enquanto os meus colegas da equipa de natação da AAC praticavam pesos no ginásio, eu saltava à corda.
Voltando ao caso que arruinou a minha reputação: resolvi fazer a minha demonstração ao povo, num terreno inclinado e escorregadio e um dos pés cedeu perante a pressão do corpo. Senti uma dor enorme, depois uma dormência e finalmente o maldito pé começou a inchar. Deitei-me num sofá durante uma hora na esperança da minha situação melhorar com o tempo. Entretanto era alvo do gozo de todos os que assistiram à maldita demonstração.
A minha mulher, na altura minha namorada, levou o carro para casa enquanto eu dizia mal da minha vida.
No dia seguinte, Domingo, a coisa não melhorou, e na segunda-feira seguinte resolvi ir de carro e a coxear até ao Centro de Saúde do Bairro Norton de Matos para verificar a minha situação clinica.
Tirei a senha, inscrevi-me e esperei cerca de duas horas para ser atendido. Na altura havia uma propaganda para os utentes não encherem as Urgências dos Hospitais e que deveriam fazer uma primeira triagem nos Centros de Saúde e assim se explica este meu gesto de me dirigir inicialmente ao Centro.
Fui atendido por uma médica mal-humorada que me ralhou imenso por eu estar ali e que me questionou “o senhor não saber que aqui não temos aparelho de Raios-X? Tem que ir ao Hospital. O Hospital é para essas coisas”. Fazia lá eu ideia que eles não tinham aparelho de raios-x.
Escorraçado do Centro de Saúde Norton de Matos, lá me dirigi de carro até às Urgências dos HUC. Como não existe parque de estacionamento perto das Urgências e os do Hospital estavam cheios, tive que deixar o carro num local manhoso, e percorrer 2 quilómetros a coxear até às Urgências.´
Pergunta o leitor e muito bem: Porque é que este gajo andava a fazer isto tudo sozinho? Esta mania de ser independente e não andar a chatear as pessoas com os meus problemas, e a mania que nunca tenho nada de grave levou-me a isso. A minha mulher e a minha irmã estavam a trabalhar e os meus pais não se encontravam em Coimbra.
Lá entrei nas Urgências, inscrevi-me e fizeram-me entrar numa sala onde estavam dezenas de pessoas sentadas e deitadas em macas à espera de uma triagem. As conversas entre os pacientes eram sempre as mesmas, falavam das doenças e problemas que tinham e cheguei à conclusão que o meu problema deveria ser dos menos graves por que lá encontravam.
Depois de efectuada a triagem, dirigiram-me à secção de Ortopedia onde fui atendido por uma equipa médica muito simpática, tirei as radiografias no gabinete ao lado e regressei ao serviço de Ortopedia onde chegaram à conclusão que teriam de me engessar o pé. Argumentei, contrargumentei, apelei ao bom senso da equipa médica, mas de nada me valeu este esforço. Engessaram-me o pé e acabou a história.
Deviam ser cerca das 4 horas da tarde quando acabou o processo. Conduziram-me numa cadeira de rodas até a um sítio onde se paga, e depois de ter efectuado a transacção comercial disseram-me “Já se pode ir embora. Veja se arranja umas muletas”.
Nesse momento senti-me o mais desgraçado dos homens: sentado numa cadeira de rodas à porta do hospital, com a perna engessada, sem muletas, calças rasgadas, com um saco numa mão onde se encontravam um sapato e uma meia, e sozinho! Felizmente vivemos na era das telecomunicações, telefonei à minha irmã e passado meia hora, lá estava ela à porta das Urgências para me levar a casa. Entretanto também apareceu a minha namorada.
Era necessário arranjar umas muletas aqui para o vosso amigo. A quantidade de pessoas que possuem muletas mas que não sabe onde as guardou ou que estão emprestadas a alguém é imensa. Telefona-se a um amigo, telefona-se a outro mas apenas consegui uma muleta e tive que comprar outra.
Entretanto chegamos ao apartamento onde eu vivia sozinho. Havia um problema: a minha chave de casa e a chave de casa da mulher-a-dias eram incompatíveis e quando ela fechava totalmente a porta com duas voltas, eu apenas conseguia abrir a porta, desde que estivesse dentro de casa! Ora bem, por mais que eu a avisasse, tinha acontecido isso nesse dia. Ali estávamos nós, os três pobres diabos à porta de casa. Mais uma vez me senti um desgraçado.
Como vivia no primeiro andar e o terreno era inclinado fazendo com que a parte de trás do andar se parecesse um rés-do-chão mais elevado, foi sugerido por um homem que passava ali na altura que tentássemos entrar por uma das janelas utilizando um contentor do lixo para servir de apoio ao assalto. E assim aconteceu, as duas santas colocaram um contentor do lixo por debaixo de uma janela, subiram para cima do contentor e lá conseguiram abrir a janela. O facto da mulher-a-dias trancar as portas de casa mas não as janelas foi considerada uma bênção, e finalmente eu estava em casa.
Um gajo que esteja em casa sozinho e com incapacidade de locomoção tem que pensar em várias coisas, nomeadamente o abastecimento de víveres para uma semana e isso implicava diversos litros de cerveja, vários maços de tabaco e mais algumas coisas de interesse menor.
Comecei a achar que afinal tinha sorte e iria passar 2 semanas de “papo para o ar” a ver filmes e a fazer jogos no computador. Tal não sucedeu e na 5ª feira seguinte resolvi ir trabalhar. É estranho conduzir com uma perna engessada pois perdemos completamente a sensibilidade para carregar nos pedais, e assim lá ia eu aos solavancos para o emprego que ficava sensivelmente a 2 Km de minha casa.
Devo dizer que nunca me adaptei às muletas. O pé de apoio e que me dava mais jeito para caminhar era o que estava aleijado, e assim acabei por dar cabo do gesso todo do pé. Para reparar este desastre resolvi calçar uma meia preta por cima do gesso.
Quando um tipo dá cabo de um pé ou de um braço, uma coisa terrível é ter que contar a história a toda a gente e a minha história era completamente ridícula, assim, tive que mentir e arranjar histórias alternativas para não estar sempre a contar a mesma coisa.
Para além do problema de ter que andar a contar a história do acidente, é também ter que ouvir histórias de acidentes da pessoa que nos interroga: “Pois aconteceu-lhe isso a saltar à corda. A mim, há 17 anos parti um braço, e a minha sogra fracturou uma costela”, e por aí fora. Talvez as pessoas contem histórias de acidentes a quem está acidentado como forma de solidariedade e alivio para comigo, mas começo a desconfiar quanto alguns me perguntam “Então? Foi acidente de automóvel?”, numa esperança clara de que para além dos danos físicos também houve materiais, ou seja, aleijarmo-nos e perdermos dinheiro é que é bom.
Não gosto muito de falar de doenças pois estou convencido de que quando mais falarmos de doenças mais doentes ficaremos. Mas fiquei um verdadeiro especialista sobre gessos e imobilidade da perna de tanto palpite ouvir.
Passados 15 após ter colocado o gesso e através de cunhas e ameaças de que se ninguém me tirasse o gesso seria eu a tirá-lo, lá regressei à normalidade da vida.
Pronto, está contada a história do meu pé engessado.
Pedro Guimarães