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Os olhos azuis de Franco Nero

© dr

Na conversa que se seguiu à projeção de Keoma nos recentes Encontros de Cinema do Fundão, Beira Baixa, alguém perguntou a Enzo Castellari porque fazia cinema. Castellari sorriu. «Que outra coisa poderia fazer?», respondeu com simplicidade. Vinha de uma família de filme, o pai, realizador, o tio, realizador, o irmão, ator, a mulher, que já não recordo o que fazia, uns de câmara em punho, outros à frente dela, outros atrás, uns no antes, outros no depois. O cinema, o líquido amniótico que bebeu, a água da nascente que o lavou. Só podia responder ao chamamento e cumprir o destino que para ele fora traçado. O cinema, destino feliz. Castellari divertiu-se imenso, imagino.

Castellari gosta de Keoma, uma das suas melhores películas, dizem os entendidos, e, talvez, uma das preferidas do realizador. Eu também gostei, muito mais do que do filme projetado na sessão anterior, Escape from the Bronx. Saí da sala pensativa. Como tudo se pode relacionar com tudo, encontrei semelhanças entre as figuras trágicas de Keoma e a do capitão Salignac, enigmático e maldito personagem do extraordinário romance de Leo Perutz, O Marquês de Bolibar. Uma contaminação, uma imagem sincrética, devida provavelmente ao facto de ter terminado a leitura dessa obra escassas horas antes. Salignac cumpre todas as missões que lhe são confiadas, mesmo as mais arriscadas, deixando todavia um rasto de morte e destruição à sua passagem. Quem o acompanha, morre. Salignac, ele, não consegue morrer ainda que o deseje. A morte salva-o sempre.

Também Keoma parece ter sido salvo da morte pela própria morte, pela primeira vez enquanto criança de tenra idade. A bruxa vidente e mortífera que o salvou continua a aparecer-lhe a par e passo como um sonho angustiante e repetitivo, qual lâmina a reabrir uma ferida insanável. Keoma, o mestiço, que o amor do pai não consegue proteger do assédio e do ódio dos irmãos «puros» sobrevive à guerra civil americana e regressa a casa para… para quê?? Voltar a ver o pai? Reclamar o seu lugar? Vingar-se? Fazer justiça? Não. É um herói de western, tem de cumprir um fado.

Sustentava Séneca que nós, humanos, somos como cães atados a uma carroça em movimento. A trela prende-nos e só nos concede uma margem de manobra limitada. Para maximizar as probabilidades de ser feliz é preferível, afirma ele, seguir na direção em que não queremos ir a lutar contra algo que não está no nosso poder mudar. A humana capacidade de livre arbítrio só existe numa estreita medida. A trela que prendia Keoma era demasiado curta, na proporção inversa da dimensão do trauma.

Justiça feita, missão cumprida, destruição e carnificina. Será possível ser-se justiceiro sem semear a morte? Uma vez mais, a morte não quis Keoma (caso contrário como poderia Castellari fazer justiça ao seu personagem?). Keoma deixa nas mãos da bruxa-morte o embrião do que o poderia salvar de um destino anunciado de solidão irremediável e eterna. Keoma, porém, ou recusou a salvação ou preferiu subtrair-se ao risco de ser o fazedor de um remake da sua própria história.

Seremos nós marionetas presas a fios movidos por mãos invisíveis? Seremos nós surdos à banda sonora das nossas vidas, a que acompanha o presente e vaticina o futuro como o coro no teatro grego? Será a morte a nossa derradeira – e única – liberdade?

Uns olhos daqueles só podem atrair desgraça. E de súbito veio-me uma memória poeirenta: a minha avó, óculos na ponta do nariz, renda tombada no regaço e mãos no colo a evocar, em conversa com a minha mãe, o filme que tinham visto juntas na véspera, e os olhos azuis de Franco Nero a iluminar o trágico destino de Lancelot. Dizia ela, traquinas, deve ser bom ser amada por um homem com uns olhos daqueles. E comecei a rir à gargalhada.

Eduarda Macedo

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