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Orgulho autista: Dar lugar à diferença, escutar para lá do diagnóstico

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Assinala-se este mês o Dia do Orgulho Autista, uma data que não se presta a vitimizações, nem a celebrações acríticas. Trata-se, sim, de reivindicar o direito à diferença, à subjetividade e à escuta de quem vive com um diagnóstico de autismo. Na idade adulta, quando os holofotes clínicos e escolares se apagam, e a singularidade de cada trajecto ganha relevo, esta realidade assume suma importância.

A particularidade da abordagem psicanalítica está em reconhecer que o indivíduo tem um conhecimento fundamental sobre seu próprio funcionamento. A célebre frase – “Nada sobre nós, sem nós” – parece basear-se nesta realidade. Nesta medida, é importante levar a sério aquilo que os autistas dizem sobre si mesmos.

Num tempo em que o autismo é cada vez mais falado, importa perguntar: estamos a ouvir quem vive com ele?

O sobrediagnóstico e o risco da identidade colada ao rótulo

Nas últimas décadas, o número de diagnósticos do chamado “espectro do autismo” aumentou de forma exponencial. Embora isso possa ser, em parte, consequência de um maior conhecimento e sensibilidade social, a Psicanálise adverte para os riscos do sobrediagnóstico — sobretudo quando este é feito com base em listas de comportamentos e critérios normativos, sem uma escuta real da singularidade do sujeito.

O problema não é o diagnóstico em si, mas a forma como ele pode cristalizar uma identidade, como se resumisse a pessoa a um funcionamento cerebral ou a uma estrutura fixa. O diagnóstico não deve fechar, mas abrir — não deve rotular, mas servir de ponto de partida para uma escuta ética. Parafraseando o psicanalista Carlos Amaral Dias, é um “Dia-gnóstico” e não um “Noite-gnóstico”: deve trazer luz e não escuridão.

Reduzir o sujeito ao autismo é impedir que ele fale por Si e de Si. Como se, por detrás do nome clínico, não houvesse um desejo, um sofrimento, uma história própria, mas apenas um conjunto de traços e sinais comportamentais.

O autismo não se cura — mas pode ser acolhido

Ao contrário do que se espera de algumas abordagens terapêuticas baseadas na normatização do comportamento, a Psicanálise não procura “curar” o autismo, no sentido de o apagar ou transformar num ideal neurotípico.

A Psicanálise contemporânea propõe uma leitura do autismo não como transtorno, mas como uma estrutura clínica específica, segundo a orientação da psicanálise lacaniana. Critica-se a abordagem tradicional, centrada na ideia de déficit, e sustenta-se que o autista não é um doente, possuindo, isso sim, uma estrutura possível de existência; não está “fechado em si mesmo”, mas sim posicionado de uma forma particular em relação à linguagem, ao corpo e ao Outro. Trata-se de um modo próprio de estar no mundo, que deve ser reconhecido e acolhido — e não corrigido.

Na escuta psicanalítica, o que se pretende não é adaptar o sujeito ao mundo tal como ele é, mas construir, com ele, um modo habitável de viver — à sua medida, no seu ritmo, com os seus recursos. Como sintetiza Eric Laurent, a Psicanálise ajuda o autista não a mudar de estrutura, mas a encontrar estratégias singulares para viver com ela.

A importância da escuta na idade adulta

Apesar do autismo não terminar na infância, a maioria dos dispositivos terapêuticos ainda está centrada nas fases iniciais do desenvolvimento, deixando os autistas adultos em lugares de invisibilidade ou exclusão. A clínica psicanalítica tem aqui um papel fundamental: reconhecer o sujeito autista adulto como portador de desejo, de sofrimento e de singularidade, e não apenas como “portador de um diagnóstico”.

Tanto mais que, apesar do foco ainda recair sobre o diagnóstico e a intervenção na infância, o autismo não desaparece com a maioridade — e é muitas vezes na vida adulta que surgem os maiores desafios: no trabalho, nas relações afetivas, na construção de uma identidade autónoma. Infelizmente, muitos adultos autistas sentem-se abandonados, incompreendidos ou infantilizados.

Efectivamente, a entrada na vida adulta é, para muitos autistas, um momento crítico — pela perda dos apoios institucionais, pela dificuldade em se inserir no mundo do trabalho, e pelas exigências normativas de autonomia e socialização. A Psicanálise oferece um espaço onde a escuta da angústia, da invenção e da solidão pode acontecer sem forçar o sujeito a aderir a um ideal de adaptação.

Hodiernamente, dá-se cada vez mais enfase à importância de escutar o sujeito autista enquanto adulto, fora do campo estrito da intervenção pedagógica ou comportamental. Na clínica psicanalítica, esta escuta centra-se no que o sujeito tem para dizer — e não no que se espera que ele diga.

Escutar não é exigir clareza. É permitir que a palavra aconteça mesmo quando não é linear, mesmo quando surge através de silêncios, gestos, repetições ou invenções particulares. Escutar é reconhecer que há ali um sujeito, mesmo que não se exprima dentro do que a cultura define como “normal”.

Orgulho não é rótulo — é reivindicação de existência

O Dia do Orgulho Autista não é, como alguns crêem, uma comemoração do sofrimento. É uma afirmação da diferença como legítima, como digna, como humana. Ser autista não é ser incompleto — é ser outro. E é essa alteridade que precisa de espaço, de tempo, de escuta.

Mais do que enquadrar ou padronizar, é necessário oferecer lugares de expressão, vínculos possíveis, mediações simbólicas que ajudem o sujeito autista a encontrar um lugar onde possa existir sem se apagar — e onde possa ser lido para além do diagnóstico.

A Psicanálise como lugar de invenção subjectiva e ética

Neste sentido, a Psicanálise é bem mais do que uma técnica. É uma posição ética: aquela que reconhece que não há cura para ser sujeito, mas há espaço para que cada um invente o seu modo de viver.

A Psicanálise não oferece uma cura para o autismo, mas propõe uma ética da escuta e da invenção subjetiva. A sua contribuição está em abrir espaços simbólicos para que o sujeito autista, inclusive na idade adulta, possa sustentar-se como tal, com os seus modos próprios de estar no mundo, sem violência e sem apagamento.

Como afirma Jean-Claude Maleval, psicanalista com uma extensa obra no campo do autismo, “o autista não está encerrado, está protegido”. Cabe à escuta clínica não invadir, mas respeitar esse espaço, e ajudar a criar pontes possíveis para o mundo.

A Psicanálise, reitera-se, não visa normalizar, corrigir ou adaptar o autista ao mundo neurotípico, mas ajudá-lo a encontrar formas singulares de habitar o laço social, preservando a sua subjetividade e os seus recursos próprios. A escuta psicanalítica respeita o tempo e o modo de expressão do sujeito autista, mesmo que ele não surja pela via verbal convencional. No fim de contas, o que está em causa não é a normalização do autista, mas a humanização do olhar sobre ele.

Neste Dia do Orgulho Autista, o maior gesto de respeito que podemos oferecer talvez não seja falar, mas escutar. Com um profundo respeito e compreensão.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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