De que está à procura ?

Colunistas

O provérbio 

© dr

Começo por um depoimento: 

Não conheço e, até ao passado dia 24 de janeiro, nunca tinha ouvido falar dos cidadãos Pedro Calado, Custódio Correia e Avelino Farinha. 

O primeiro era, até essa data, presidente da Câmara Municipal do Funchal; o segundo, o maior acionista de uma empresa bracarense chamada Socicorreia (construção civil e imobiliário); o terceiro, diretor-geral do Grupo AFA (engenharia e construções). 

Prosseguindo: 

No dito dia 24 de janeiro, foram os três detidos, no âmbito daquilo a que logo se chamou uma «megaoperação»: em aviões da Força Aérea Portuguesa, desembarcaram com aparato no aeroporto Cristiano Ronaldo dezenas de agentes da Polícia Judiciária que, após minuciosas buscas às residências e locais de trabalho dos «suspeitos», com apreensão de computadores, telemóveis e quejandos, os trouxeram — algemados — para os calabouços da PJ em Lisboa, onde permaneceram 22 dias em condições precárias (os calabouços da Judiciária destinam-se a detenções de «curta duração») e sem o menor direito a contactos exteriores com amigos ou sequer familiares (apenas os respetivos advogados os podiam visitar). 

Ora, no Estado de direito que a República Portuguesa é (ou deveria ser), ninguém pode ficar detido mais de 48 horas sem culpa formada. Argumentou-se que a complexidade do caso não teria permitido acelerar a instrução. Estavam em causa três inquéritos e crimes de atentado ao Estado de direito, corrupção, prevaricação, abuso de poder, alegados favorecimentos do autarca funchalense aos empresários. 

Enfim, um juiz terminou a dita instrução a 14 de fevereiro, concluiu que não havia indício de crime e libertou-os. Tudo isto ao cabo de mais de três semanas de detenção. 

Embora o caso esteja longe de encerrado, porquanto o Ministério Público recorreu desta decisão e persiste nas suas acusações, é incontestável que houve aqui desproporção e discricionariedade. 

Por mim, ignoro o fundamento das acusações. Prefiro aguardar para ver. Mas, enquanto cidadão, confesso-me inseguro perante o funcionamento do sistema judicial português. Posso ser detido, ficar lá tempos esquecidos, autorizado a contactar — unicamente — um advogado. Depois, mandam-me em paz porque afinal era tudo fogo fátuo. Vá-se lá embora. Vá com Deus. E desculpe qualquer coisinha. A humilhação já ninguém ma tirará. 

Não estou tão preocupado com os detidos da Madeira como estou POR MIM PRÓPRIO: basta uma suspeita, uma «detenção para averiguações», e ninguém me lavará a ignomínia na praça pública.

É impossível a sociedade funcionar sem uma estrutura judicial adequada. Mas as pessoas que a enformam, juízes e procuradores, são humanas, logo falíveis… e discutíveis. Podem facilmente cair na arbitrariedade. 

Portugal não pode tornar-se um país com medo de criticar poderes. Dizem os livros que há quatro órgãos de soberania: o chefe do Estado (presidente da República), o parlamento (Assembleia da República), o governo e os tribunais. Os três primeiros resultam da vontade do eleitorado, diretamente (chefe do Estado e parlamento) ou indiretamente (governo). O quarto, consubstanciado essencialmente pelos juízes e outros magistrados, não responde perante o eleitorado, mas sim perante instituições relativamente restritas, como o Conselho Superior da Magistratura, órgão superior de gestão e disciplina dos juízes dos tribunais judiciais. Parte-se de um princípio (falível, como toda a humana fabricação): os juízes são entidades confiáveis, a respeitar sem discussão. Ora, já em 2018 a então presidente do sindicato dos juízes dizia: «Não são um grupo ungido pelo Espírito Santo». Porém, em relação ao caso das detenções na Madeira, houve comentadores que abertamente confessaram receio de represálias por criticarem a falta de escrutínio a certas iniciativas judiciais. 

Repito que nunca tinha ouvido falar destes detidos. Dá-se é o caso de que prepotências me preocupam e me indignam. Apesar de as suspeitas não serem de crime violento, apesar de as hipóteses de fuga serem remotas, os suspeitos foram alvo de um tratamento aviltante, como a sujeição às algemas, inabituais em Portugal sequer para crimes de sangue. 

Sou, ademais, totalmente contra os julgamentos populares, que equiparo a arruaça e selvajaria. Ainda hoje, devo contar-me entre os raros habitantes deste país que não sabem se o cidadão Carvalho Pinto de Sousa, primeiro-ministro de Portugal entre 12 de março de 2005 e 21 de junho de 2011 e mais conhecido pelo nome próprio, José Sócrates, é inocente ou culpado. Na sua maioria, os referidos habitantes alardeiam certezas quanto à culpa ou inocência dele. 

Lembro-me de Miguel Macedo, antigo ministro da Administração Interna entre 2011 e 2014. No âmbito da Operação Labirinto, que incidiu na atribuição de vistos gold, foi constituído arguido a 8 de setembro de 2015 e formalmente acusado pelo Ministério Público da prática de vários crimes de prevaricação e tráfico de influências. Mais de três anos depois, acabou inteiramente ilibado, mas a sua carreira política acabou também. 

E lembro-me do processo contra Carlos Cruz, por crimes de pedofilia na Casa Pia. Ignoro se ele era inocente ou culpado, mas a sentença final de seis anos de prisão não foi proferida com base em provas objetivas, e sim na subjetivíssima intuição de um juiz (o caso tinha «cheiro de verdade»). No dia 26 de junho de 2018, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem concordou que as garantias de defesa do arguido não tinham sido respeitadas no tocante à admissão de novas provas para apreciação em sede de recurso, mas, não sendo as deliberações daquele tribunal vinculativas para o Estado português, este limitou-se a fazer a sua sentença final transitar em julgado. 

Enfim, ao contrário do que possa parecer, esta minha crónica não foca questões de Justiça, domínio no qual sou impotente como uma avezita. O seu objetivo é antes abordar um pormenor de Cultura Popular — designadamente, um provérbio. É que, se há ditados muito acertados e curiais (como aquele que, repleto de sapiência, afirma que «a falar é que a gente se entende»), um outro ressalta como tremenda e tragicamente falso, o mais falso em Portugal, aquele que traiçoeiramente diz que «quem não deve não teme». Perante a realidade, proponho a sua substituição — urgente — por «quer devas quer não devas, TEME!» 

Jorge Madeira Mendes

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA