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Há lobos no meu corpo

© DR

Estou cansado deste corpo já inútil e se pudesse trocava-o, como se faz com um envelope ou um casaco. Não posso, é pena. Todos os dias cresce em mim o pequeno novelo que assomou o meu peito há um ano. À noite, quando tudo fica num silêncio arfado, o novelo cresce ainda mais, enrodilhado nos meus membros e nos meus pensamentos. Fico como que paralisado, suponho que isso é o parecido com estar morto. A morte deveria ser banida como uma praga.

Não sei como há gente com serenidade bastante para a acolher de braços abertos e espírito limpo. Há até aqueles que brincam com ela, como o meu avô materno, carpinteiro de profissão e mestre admirado no seu ofício. Este avô, por via das dúvidas, não fosse a morte apanhá-lo desprevenido, fez um caixão para si. Assim, quando a monstra viesse, não o apanharia “descalço” de habitáculo final. Enquanto vivi lá em casa, fui-me habituando ao seu ressonar durante as sestas que fazia deitado no seu ataúde. Quando lhe perguntei se aquele não era demasiado rijo, ele, a rir-se e com os olhinhos a piscar traquinos, respondeu-me logo: Não filho, já está almofadado e tudo, dorme-se que é uma maravilha!

Penso que o avô era sábio, tinha conseguido antecipar-se à surpresa de um lugar desconhecido e pelo sim pelo não já levava os costados habituados a ele. Eu sou um ser de capacidades muito mais limitadas e assumo-o, sem pudores. Sou até esquivo a pensar na monstra quanto mais a almofadar o seu poder sobre mim! Por minha vontade viveria no mínimo mais 20 anos, ausente do pensamento e do medo de morrer.

Aprendi a ser minimamente organizado e todos os planos e projetos que desejo para amanhã estão arrumados nas gavetas do meu calendário. É só recuperar a desorganização das minhas células que sem quê nem porquê se puseram aos gritos e aos solavancos por todos os canais do meu corpo. No início ignorei estes ruídos, estes tremores, assente nem sei em que barro de fé na imortalidade. Fiz o que pude e não pude para prosseguir sem olhar para o lado, assobiando eficaz ao momento para continuar a suster-me de pé. 

Mas sem que eu desse conta, o meu caminho tornou-se cada vez mais um lanço de escadas com dificuldades redobradas. A cada degrau que subia vislumbrava o patamar do meu vigor descendente. É muito difícil aceitar a consciência de nós mesmos quando esse conhecimento nos provoca ansiedade e medo.

Durante mais de 60 anos andei numa azáfama de ganha-pão sem nome nem apelido. A pobreza é transparente e eu passei a vida inteira a tentar tornar-me visível. Fiz, também, muitos esforços para ver os outros, mesmo quando estes não eram percetíveis. Nada é mais aniquilador do que ser ignorado e transparente. É verdade que somos todos números e que, aliás, os usamos de forma muito eficaz para nos identificarmos. Mas mesmo sendo números, não podemos ignorar a nossa condição de humanos, seres que se emocionam com o riso de uma criança ou um botão de flor a despontar, seres que criam belas melodias, êxtases de cores e suplementos vitamínicos de poesia para ajudar a fazer este percurso com arte. Seres que idealizam e melhoram a existência dos seus semelhantes de muitas e diversas maneiras e conseguem fazer esquecer o quanto somos um ponto ínfimo nesta imensidão espacial.

A puta da doença trocou-me as voltas. Vou ter de me contentar em pensar nos planos do que poderia ter sido, já não é mau de todo. Há por aí muito boa gente que nunca fez nenhuma reflexão sobre o que foi, é, ou poderia vir a ser. A metafísica da vida desses cabe numa sanita de casa de banho pública! A minha cabe nesta imensa angústia de deixar os que amo. E podia também acrescentar, no sentimento de que tudo o que fiz nesta vida sabe a inacabado. Será que é assim para todos os que partem, nada está completado, tudo sabe a pouco e amarga na boca das delícias ainda por preparar, nos sabores esquisse por apurar?

Ultimamente tenho-me lembrado muito da mãe. Vejo as suas mãos levantadas em gestos bruscos, o seu rosto fechado sem conhecer a luz de um sorriso, os seus olhos fugidios, mas sempre firmes quando fixavam os outros. Nunca a vi chorar ou sequer vacilar perante nada, nem ninguém. Recordo as suas noites insones, que me acordavam, em que declamava versos que ainda hoje há quem recorde na aldeia. Como não sabia ler nem escrever, pois pertencia à metade da população sem direitos, declamava horas a fio para os memorizar. E, de facto, memorizava. Havia noites em que escolhia as quadras da fúria, outras vezes as quadras da revolta, outras, raras, as quadras em que falava de flores, de morangos silvestres, de cantos de passarinhos. A vida dela parece-me agora um deserto tão inóspito! Deserto que se alargou por afinidade a todos nós.

Neste momento volto a ser o menino medroso ancorado na serra com medo dos lobos, mas que uivavam menos que o meu pavor de chegar a casa sem uma ovelha. Nunca recuperei aquela ovelha e talvez por isso tenha ficado à mercê das bestas selvagens, fixado definitivamente naquele frio serrano entretido a delapidar-me até ao esqueleto.

Nasceu uma nova manhã, já não me queixo às enfermeiras e também já não peço nada à minha filha. Sei que os lobos rondam perto e prefiro ficar silencioso à espera de que se vão embora e me deixem sonhar que ao dizer quero viver a vida não me vai desamparar e que eu vou poder descer da serra ao colo do avô, protegido pelo seu calor e os seus braços fortes e aconchegantes.

Ao meu pai, com imensa saudade, sempre

Paula Sá Carvalho
in TEMPO EXTRA, Poética edições

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