
Não choveu apesar de tudo. Mas a nuvem branca, a mesma nuvem que até aí parecia estar inocentemente estática num céu azul e um sol abrasador, começou a ganhar vida.
Nesse momento, enquanto todos estes inesperados acontecimentos se desenrolavam, já nós, ainda dentro da poça, sentíamos o terror da situação entrar-nos pelas entranhas, sem que tivéssemos sequer a coragem de sair da poça para fugir a sete léguas.
Ali ficamos, com o corpo escondido pela água fresca, mas suja de lama, da poça, apenas com a cabeça de fora, os olhos fixos no céu que agora escurecera de maneira tenebrosa.
A nuvem mesmo assim continuava branca, mas um branco que parecia sujo pelo cinzento do céu de pano de fundo.
– Que merda é esta?
Perguntei sem ter a certeza de que algum dos meus amigos me ouvisse.
– Deve ser uma tempestade.
Disse o Diogo.
Que outra conclusão se poderia tirar? Mesmo estando um dia quente e bonito, seria possível ter chegado uma tempestade sem aviso?
Mas uma tempestade não transformava uma única nuvem branca, que agora parecia uma nuvem branca, suja, em constante rebuliço.
Estaríamos a alucinar? Seria o sol escaldante ao qual estivemos expostos sem precauções, que nos aqueceu a moleirinha, e por causa disso sofríamos agora as consequências?
Fosse o que fosse, o que estava a acontecer, para nós era real pois tínhamos no rosto a mesma expressão de terror, e ao mesmo tempo incredulidade.
A nuvem branca, agora com um cinzento carregado, como pano de fundo, e por isso passou a branco-sujo, começou a inchar, ao mesmo tempo que parecia um louco metido numa camisa de forças, a tentar escapar.
De repente…pum, pariu uma outra nuvem que se colocou ao seu lado. E nesse mesmo momento uma e outra transformou-se naquilo que cada um de nós, com a sua imaginação, viu no formato original, quando deitados na relva, mesmo ao lado da poça, mãos entrelaçadas atrás da nuca a servir de almofada, divagávamos na nossa inocência de miúdos.
E então, uma das nuvens, a original penso eu, transformou-se num cavalo negro, de crinas longas e sedosas, e a montá-lo, a mulher do lavrador estarrincando os dentes, ao mesmo tempo que dava tresloucadas gargalhadas, cavalgando ao lado da nuvem parida, que agora era uma bem real locomotiva a descer do céu em grande velocidade, na nossa direção.
Como que a rasgar o céu cinzento carregado, viam-se enormes faíscas aqui e ali, como raios de trovão, e de cada vez que aparecia uma a espreitar esse céu cinzento carregado, ouvia-se um estrondo, como se todo o planeta estivesse a rebentar pelas costuras.
As espigas de milho, bem como os pés que as suportavam, continuavam a tremer a toda a força, mas mesmo assim, nem uma única se despegou do seu pé.
Não se percebia se era a espiga a agarrar-se ao pé com determinação e coragem, para não cair, ou se era o pé que agarrava a espiga, para que ela não se despegasse.
– Se calhar vamos morrer.
Gritou o Raúl.
Os relâmpagos a fazerem rasgos no céu, os estrondos que se faziam ecoar por toda a terra, pelo menos assim nos pareceu, a locomotiva a todo vapor, a mulher do lavrador louca como nunca a tínhamos visto, montada no cavalo negro e lustroso, acompanhando a todo o galope a locomotiva descendo na nossa direção, ai jesus que o nosso medo era tão grande que bem nos podíamos ao menos regozijar por estarmos dentro de água, pois se assim não fosse já nos tínhamos mijado pelas pernas abaixo.
À medida que a mulher do lavrador, montada no seu cavalo, se ia aproximando da poça, e ao seu lado a locomotiva a todo o vapor, surgiu uma ponte em arco, logo acima das nossas cabeças, e nesse momento percebemos que tanto a mulher do lavrador, como a locomotiva, que desciam em direção à ponte, quando a passassem para o outro lado, iriam esbarrar em cheio na poça.
A arrastar a água da poça com os pés e a barriga, tentamos correr para o canto que sempre evitávamos quando dávamos os nossos banhos. Mais valia ficarmos com as costas e os braços, ou qualquer outra parte do nosso corpo, arranhadas pelos picos das silvas, do que morrer esborrachados pelo impacto da locomotiva a vapor, bem como a mulher do lavrador montada no cavalo, quando entrassem pela poça adentro, mesmo que o fizessem em forma de nuvem espessa.
O nosso medo era tão grande que quando chegamos à ponta da poça, de onde tombavam as silvas sobressaídas do pequeno monte por detrás dela, tivemos todos o mesmo impulso, pois quando olhamos para trás já os nossos algozes passavam debaixo da ponte, e logo a seguir a isso, talvez menos de um minuto depois, eramos nós. Por isso atiramo-nos para o monte de silvas.
Atiramo-nos…!
Bem…para falar a verdade, não tenho bem a certeza que fossemos nós a atirarmo-nos para as silvas. Digo isto porque, apesar do medo que surgia por detrás de nós, era preciso uma coragem muito grande, ou um medo maior ainda, para que nos atirássemos voluntariamente para as silvas. Por isso, uma força descomunal vinda do lado de dentro delas, puxou-nos sem que tivéssemos outra hipótese a não ser deixarmo-nos arrastar por essa força.
O Mário foi o primeiro a ser puxado, logo seguido pelo Diogo e o Raúl. Vi-os levantar os braços para protegerem a cara dos picos das silvas.
A seguir ia eu, mas antes de mergulhar dentro das silvas, olhei para trás e vi o comboio a vapor, a mulher do lavrador montada no cavalo negro e lustroso, de crinas sedosas, a entrar pela ponte, e ao sair do outro lado, onde poucos metros depois ficava a nossa poça, a desfazerem-se da mesma maneira que se haviam formado da nuvem, retornando ao formato original, para logo de seguida se transformar num assombroso dragão que abriu a sua enorme boca fogosa, para vomitar um enorme clarão de lume na nossa direção.
O lume caiu sobre a poça varrendo toda a vegetação em sua volta, incluindo as silvas que sobre ela tombavam. Mas nessa altura já nós tínhamos caído num buraco que mais parecia um túnel sem fim, iluminado por uma luz intensa que saía de milhares de cristais suspensos ao longo de todo o túnel.
Devia ser um túnel enormíssimo pois parecia não ter fim.
Capítulo 3
Eu perdi os rapazes na queda, porque no túnel onde caímos, rodeado de milhares de cristais reluzentes a emanar uma luz intensa que se cruzava e fundia com cores diferentes, aqui e ali aparecia um buraco negro numa das extremidades do túnel, umas vezes à direita, outras vezes à esquerda, e um a um, havia sempre um dos buracos que de forma aleatória puxava um dos rapazes à passagem, como se tivesse sido engolido por esse buraco negro.
Para onde cada um desses buracos levava a rapaziada, eu não fazia ideia, mas ao vê-los a serem sugados por tão tenebroso acontecimento, o meu medo aumentava, e a incerteza do que me iria acontecer a mim, sendo o que já acontecera a cada um deles, se o nosso destino ao ser puxado pelo buraco negro, à nossa passagem, fosse o mesmo, fazia com que aquele momento se estendesse por uma eternidade (…)
António Magalhães
Excerto de “Memórias de outros tempos”