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A génese de Israel 

© Lusa

Nunca será de mais frisar a fundamental importância que um bom conhecimento dos antecedentes históricos tem para se entender o que está em jogo no conflito entre Israel e a população árabe da Palestina. 

Ouve-se amiúde que a criação do Estado judaico resulta de uma decisão do Ocidente, designadamente dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Esta bizarra tese não é apenas fruto de ignorância inócua — equivale, na verdade, a reduzir Israel a uma mera cunha cravada a despropósito no mundo árabe. Cito duas ocorrências: 

Um comentário do falecido ator Nicolau Breyner (que, ainda assim, reconheceu a sua ignorância em relação a certos temas) no programa Bom dia, Portugal da Rádio e Televisão de Portugal de 16 de novembro de 2013. 

Mais recentemente, a afirmação da jornalista Lumena Raposo de que Israel foi criado pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha na sequência do acordo Sykes-Picot. 

É certo o caráter subjetivo de uma opinião, nunca fácil de contestar taxativamente. Mas, aqui, não estão em causa opiniões, e sim erros factuais, afirmações que colidem com a realidade histórica. 

Comecemos pelo acordo Sykes-Picot, do nome dos diplomatas que o assinaram, o britânico Mark Sykes e o francês François Georges-Picot: 

Data de 1916, quando, em plena Primeira Guerra Mundial (a chamada «Grande Guerra», de 1914 a 1918), a Grã-Bretanha e a França entenderam repartir os territórios do império Otomano no Médio Oriente, na previsão da sua eventual queda. 

A França tutelaria um território a sul da atual Turquia, no qual nasceriam dois Estados árabes: a futura Síria e o futuro Líbano (este distinguir-se-ia por nele existir uma maioria cristã, os árabes maronitas: ou seja, o Líbano seria o país dos árabes cristãos, o que se veio a revelar uma quimera, pois hoje os libaneses maronitas são uma minoria cada vez mais exígua num Líbano onde impera um movimento islamista radicalizado, o Hezbollah, que se substitui ao próprio Estado libanês). Por sua vez, a Grã-Bretanha tutelaria os territórios que viriam a ser, designadamente, o Iraque, a Jordânia, a Arábia Saudita e uma pequena fatia designada vagamente como Palestina, entre o Líbano, a norte, o rio Jordão e o mar Morto, a leste, a península egípcia do Sinai, a sudoeste, e o mar Mediterrâneo, a ocidente. Nisto, basicamente, consistiu o acordo Sykes-Picot, que nada teve a ver com a criação do Estado de Israel. 

A afirmação de que Israel nasceu pela mão do imperialismo ocidental — e, em particular, de britânicos e americanos — não é do foro opinativo, mas sim do foro factual e, nessa aceção, completamente errada. 

A ideia de criar na Palestina uma pátria para o povo judeu nasceu na segunda metade do século XIX, sobretudo pela ação de Theodor Herzl, cidadão austro-húngaro comumente chamado «pai do sionismo». E foi, subsequentemente, o movimento sionista internacional que a promoveu («sionismo» deriva de Sião, uma elevação situada no flanco sudeste do chamado Monte do Templo, em Jerusalém, a qual acabou por se tornar designativa de toda esta cidade e, por extensão, da nação judaica em si). Apesar de ter ganhado contornos pejorativos, o sionismo consistia, na sua origem, num movimento que simplesmente preconizava o regresso do povo judaico a Sião e a reconstituição do seu Estado. 

Em 1917, a Declaração Balfour (carta enviada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros britânico Arthur James Balfour a Walter Rothschild, influente elemento do movimento sionista mundial) constituiu um aval do governo britânico à iniciativa. No entanto, perante a manifesta hostilidade dos árabes à criação de um Estado judeu após a derrota da Turquia na Primeira Guerra Mundial e o desmembramento do império Otomano no Médio Oriente (que ficou, como disse, sob a tutela da França e do Reino Unido), o apoio britânico a essa criação esfriou notoriamente, a ponto de as autoridades britânicas às quais estava confiado o mandato sobre a Palestina repatriarem zelosamente os imigrantes judeus que demandavam aquelas paragens (a chegada de judeus à Palestina acentuara-se com a subida de Hitler ao poder e, naturalmente, após a Segunda Guerra Mundial). Ao contrário do que por vezes se afirma, o governo britânico resistiu à criação do Estado de Israel. Refira-se, por exemplo, que as forças militares britânicas no futuro Israel foram alvo de ataques, na altura qualificados como «terroristas», de um movimento armado judaico, o Irgun: o mais mortífero foi o ataque à bomba de 1946 contra o hotel King David, em Jerusalém, em cuja ala sul estavam aquartelados militares britânicos. No Irgun participou, por exemplo, Menáhem Bêggin, que seria primeiro-ministro de Israel entre 1977 e 1983. 

Quando, em 1947, a Organização das Nações Unidas votou maioritariamente o fim do mandato britânico sobre a Palestina e a criação de dois Estados, um árabe (que viria a ser a Transjordânia), o outro judeu (que viria a ser Israel), o Reino Unido, embora conformado, afigurava-se mais derrotado do que vitorioso. 

Quanto aos americanos, nem sequer se importavam grandemente com a questão. A Agência Judaica, que geria os interesses dos judeus instalados na Palestina, desdobrou-se em contactos junto do presidente Harry Truman para que, na votação, os Estados Unidos apoiassem a criação do Estado judeu (ao lado do Estado árabe). Por essa altura, a política externa dos Estados Unidos não tinha, nem vagamente, a dimensão que mais tarde viria a adquirir. As feridas da Primeira Guerra Mundial traumatizaram o país, a ponto de inicialmente relutar em participar na Segunda (só o brutal ataque japonês à sua frota em Pearl Harbor convenceu os Estados Unidos a entrarem na guerra). Ao contrário do que a História dos últimos setenta e cinco anos pode levar a crer, os Estados Unidos foram, durante muito tempo, uma nação pouco preocupada com protagonismos na arena mundial. 

A criação de Israel não foi obra de ingleses ou americanos — foi, sim, um objetivo no qual se empenharam (e que vieram a concretizar) judeus integrados no «movimento sionista». Consoante o ponto de vista (por outras palavras, consoante a opinião, que deve ser sempre respeitada), pode-se considerar positivo ou, pelo contrário, nefasto esse objetivo de criar uma pátria para o povo judeu na Palestina. Não pretendo discutir opiniões em tal matéria. O que importa é que os factos não sejam falseados. 

Para a construção de uma pátria judaica, o sionismo obteve, como se compreende, apoio internacional, mas a maior parte desse apoio veio da Europa continental e, muito particularmente, dos países do bloco soviético. A este respeito, é bastante elucidativo o seguinte escrito de Álvaro Cunhal, publicado no jornal Avante!, n.º 133, primeira quinzena de março de 1949, sob o título «A RODA DA HISTÓRIA NÃO FAZ MARCHA ATRÁS — A SITUAÇÃO EVOLUI A NOSSO FAVOR» (como se sabe, o Partido Comunista Português, sob a direção de Álvaro Cunhal, refletia fielmente os pontos de vista da União Soviética): 

«Na Palestina, o novo Estado de Israel faz fracassar a agressão militar dos senhores feudais da Liga Árabe, equipados e comandados pela Inglaterra, e dá assim um novo impulso ao movimento libertador dos próprios países árabes.» 

Mais tarde (na segunda metade da década de 1960), o chamado «bloco socialista» reviu a sua política em relação ao Médio Oriente (ter-lhe-á parecido mais vantajoso apoiar os países árabes do que o minúsculo Israel). Entretanto, os Estados Unidos, já transformados em superpotência apostada em intervir preponderantemente nos destinos do mundo, tinham alinhado a favor do Estado hebraico. É irrelevante debatermos aqui as razões por que isso aconteceu: por exemplo, a ativa comunidade judaica residente nos Estados Unidos terá por fim logrado influenciar a política de Washington nesse sentido; ou terá sido uma questão de equilíbrio de forças entre blocos mundiais, no contexto da «guerra fria»; o certo é que, factualmente, foi assim que as coisas se passaram. 

Convém igualmente distinguir entre a partilha da Palestina em dois Estados, em 1947, e a criação do Estado árabe da Palestina ao lado de Israel, que se preconiza na atualidade. Com efeito, em 1946, quando foi constituído, o Reino Haxemita da Transjordânia incluía a chamada Margem Ocidental do Jordão, entre o Mar Morto e a zona oriental de Jerusalém. Em consequência da Guerra dos Seis Dias, em 1967, Israel ocupou este território. A Transjordânia acabou por abdicar dele, passando a designar-se simplesmente como Jordânia, visto já não transpor o rio Jordão. Israel anexou a zona oriental de Jerusalém, mas não propriamente a Margem Ocidental do Jordão, embora a mantenha sob controlo militar desde a referida Guerra dos Seis Dias e nela tenha vindo a instalar colonatos judaicos (um dos principais pomos de discórdia neste já longo conflito). A Margem Ocidental do Jordão, que constitui a atual Cisjordânia, é administrada pela Autoridade Palestiniana. 

Por sua vez, o Egito possuía uma pequena faixa de território, com capital na cidade de Gaza, a nordeste da península do Sinai. Também em consequência da Guerra dos Seis Dias, Israel ocupou toda a península, que manteve sob seu controlo militar de 1967 a 1982. Normalizadas as relações entre os dois países, o que se deveu a um primeiro passo do presidente egípcio Anuar El-Sadate, em 1978, Israel devolveu o Sinai ao Egito, mas este abdicou da Faixa de Gaza, que, juntamente com a Cisjordânia, cedida pela Jordânia, passou a integrar a proto-nação da Palestina. Aquilo que preconizam uma grande parte da comunidade internacional e até forças, infelizmente minoritárias, no interior de Israel é que seja criado o Estado independente da Palestina, constituído por estes dois territórios geograficamente descontínuos. Porém, a direção política de Israel tem sido dominada há mais de duas décadas por forças irredutivelmente opostas à criação do Estado independente da Palestina. 

De qualquer modo, é nisto que consiste a medida hoje em dia preconizada como solução para o longo conflito israelo-árabe: dois Estados, um judaico (já existente), o outro palestiniano (a criar), politicamente independentes e vinculados a acordos de paz e respeito mútuo. A criação dos Estados de Israel e da Transjordânia pelas Nações Unidas, em 1947, fora outra questão. 

Jorge Madeira Mendes

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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