A dúvida que todos os olhares atentos teriam era sobre o ponto em que se daria essa tensão limite: no universo da gestão do poder, do clericalismo e da simbólica associada à hierarquia? No campo da relação com os poderes políticos e sociais? No campo da reforma da instituição, especialmente nas questões “fracturantes”? Muito havia por onde criar disfunções internas e por onde lançar dinâmicas de mudança.
Habilmente, Francisco foi fazendo o seu trabalho no campo onde formalmente estava liberto, o da informalidade, que é exactamente onde as acções podem ganhar um cunho que, sem serem suportadas pela letra de uma alteração escrita dos códigos ou catecismos, ultrapassa o tempo presente pela natureza do gesto, pelo simbólico. De facto, Francisco, sem fazer alteração alguma teológica que amarre a Igreja Católica a uma nova postura, conseguiu impor a sua interpretação do que é a Igreja Católica através dos pequenos gestos, da adesão dos fiéis e do reconhecimento generalizado.
De um certo desdém e desvalorização que advinha do facto de acharem que o pontificado seria curto e tudo regressaria ao normal, as hostes mais conservadoras foram percepcionando a mudança à medida que o colégio de cardeais eleitores tem sido moldado, consistório após consistório. Com o último consistório, em que o bispo de Leiria-Fátima passou a cardeal, Francisco deu um passo muito grande para moldar o colégio de cardeais eleitores à sua medida.
A tensão em torno da pedofilia e da possibilidade de Francisco ter ocultado alguma coisa surge, possivelmente, como a última oportunidade para os sectores que lhe são contrários tentarem fazer algo antes do colégio de cardeais estar totalmente perdido e maioritariamente ao gosto deste Papa.
É um grito de sufoco o que ouvimos nos dias que correm por parte dos sectores ultraconservadores da Igreja Católica. E chamo-os de ultraconservadores porque esta tensão já obrigou a uma clarificação que é como que um dano colateral com que os detractores de Francisco não contavam. De facto, este ataque obrigou a uma tomada de posição e, seja por adesão clara e honesta, seja por não quererem ficar no lado errado da História, muitos elementos conservadores já se posicionaram do lado de Francisco – conservadores mas não ultraconservadores.
E este é, neste momento, o maior trunfo de Francisco. O extremar de posições leva a um natural “por mim ou contra mim”. E, nessa situação, Francisco recebeu uma ajuda tremenda por aqueles que o querem afastar: se Francisco é, para muitos católicos, invulgar, liberal e progressista, os seus rivais são muito menos desejáveis. Esta tensão poderá levar a uma clarificação de opções, aumentando a base de apoio de Francisco.
Francisco tem hoje a oportunidade de tomar decisões claras e efectivas. Seja na criação de um tribunal religioso que se dedique às questões de pedofilia, seja na continuidade das suas posturas mais abertas e progressistas.