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Raimundo Neto: a literatura como processo de libertação

Nascido no interior do Piauí, Raimundo Neto é formado em Psicologia pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Vive atualmente em São Paulo, onde trabalha como psicólogo do Tribunal de Justiça do Estado. Por seu livro de estreia, Todo esse amor que inventamos para nós, recebeu o Prêmio Paraná de Literatura, em 2018. No mesmo ano, foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura, com um romance inédito. É colaborador da revista literária São Paulo Review.

Em que momento da vida a descoberta da leitura?

O que lembro com algum detalhe é a minha mãe apresentando livros e revistas em quadrinhos para mim. Talvez, eu tivesse cinco ou seis anos. Não tínhamos livros em casa. Os livros chegaram muitos anos depois, quando minha mãe conseguia comprar. Apenas um tio, na família, tinha alguns livros. Cresci e na adolescência descobri bibliotecas. Na cidade onde eu morava, Batalha, no Piauí, havia uma única. Nas escolas, as opções de livros eram apenas de paradidáticos, como eram chamados na época. Continuei descobrindo outras bibliotecas, quando morei em Teresina. Mas só consegui comprar meu primeiro livro em 2007,2008, com meu primeiro salário oficial, pois antes disso eu fazia bicos e improvisos, para ter comida em casa, quando comecei a ter alguma autonomia e acesso à internet, para descobrir muito além das bibliotecas. No entanto, a mesma mãe que me incentivou a leitura, foi a que tirou um livro das minhas mãos e disse: “eu sei que você ama ler, mas precisamos colocar comida na mesa, me desculpe”. Por que, afinal, não dava para viver só da minha paixão pelos livros e pela leitura. Ler com o corpo em fome, dói muito. Refiro-me ao corpo físico, orgânico, à fome que corrói, não às figuras apaixonadas, que algumas pessoas adoram divulgar, sobre “ler aplaca a minha fome”.

Entre os autores que leu, quais as maiores influências?

Olha, uma das perguntas mais complexas para mim. Acredito, até agora, que as pessoas com as quais convivi e com quem construí laços profundos de afeto, foram as melhores leituras que tive. E tenho influências de muitas outras linguagens, como teatro, cinema, pintura, fotografia, música e dança (mais recentemente, o pole dance). Sou bem apaixonado por Elvira Vigna, Andrea Del Fuego, Sheyla Smanioto, Beatriz Bracher, Toni Morrison, Michael Cunningham, Hilda Hilst, Cecilia Gianetti, James Baldwin, Don Delillo, Ana Martins Marques, Lucio Cardoso, José Luis Peixoto, Cristina Judar, Virginia Woolf, Torquato Neto, Raimundo Carrero, Miranda July, Nicole Krauss, João Silvério Trevisan, Elena Ferrante, José Donoso, Cortazar, Mário Faustino, Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector, Virginia Woolf.

Que contribuição a psicologia deu ao escritor?

Ainda não consegui elaborar tanto quanto gostaria sobre essa relação. Escrevi um artigo, há alguns anos, sobre a relação entre psicologia e literatura, quando tentei alcançar alguma compreensão sobre a construção de conhecimento de estudantes de psicologia, na universidade onde estudei, a UESPI e suas leituras de obras literárias. De lá até aqui, tenho conseguido pensar que a psicologia tem me ajudado a olhar mais acuradamente as humanidades presentes em obras literárias, os estereótipos de todos os tipos e os contextos que reduzem personagens e suas vivências a rótulos. Quero dizer que, como escritor, estou focado tanto na leitura quanto na escrita. Mas falando sobre o processo de minha escrita, a psicologia pode ter me ajudado a ouvir o que as humanidades que começam em mim e no meu processo e, assim, compõem personagens e famílias, tem a dizer, de um modo que as produza livres de rótulos, talvez. Alguns conceitos que tenho aprendido e pensado com a psicologia, ao longo de alguns anos, também me ajudaram a aprofundar com mais franqueza e responsabilidade ética o que escrevo.

Nascer no interior do Piauí tem algum significado especial sobre sua produção literária?

Acho que sim. Sou uma raiz suspensa no ar; se floresço, cresço à procura de ventos que me carreguem para longe, ainda que para dentro. Há alguns anos, tenho refletido com mais consistência sobre processos culturais e origens, pensando e repensando os muitos nordestes e meu lugar da nascença, graças às obras do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Muitas pessoas esperam que o interior do Piauí, que fui e ainda tenho em mim, seja animalesco, talvez ridículo-cômico, cheio de poeiras e mugidos, cabra-macho. Para algumas pessoas, esse seria um atravessamento único e definitivo para as obras que arrisquei escrever. No entanto, não acho que seja tão definitivo assim. O interior do Piauí é berço que me deu nome, pelo qual tenho muito afeto e ainda os sons do sotaque, os abraços que tentaram domesticar a bicha que sou, os cuidados familiares e todos os erros, humanos que fomos. O que eu não sou é o estereótipo do interior do Piauí. E é isso que tento reescrever, quando arrisco alguma produção literária. Os corpos não são os esperados pela norma. A musicalidade de seus afetos não é a esperada. As casas têm raízes que voam. É assim que tenho buscado escrever outra história para o interior do Piauí que desejo, hoje. Não sou o Nordeste rotulado nas novelas e em muitos livros considerados clássicos da literatura. E chame de nordestina e regional, porque só é literatura universal o que é produzido no Sul e Sudeste, não é mesmo? (rs).

Seu livro de estreia, “Todo esse amor que inventamos para nós”, traz histórias marcadas pelas neuroses familiares. Serão essas neuroses o principal indicador da sociedade doente em que há tanto tempo vivemos?

Complexo. Precisaria de mais tempo para pensar sobre o termo neurose. Porque é uma palavra muito carregada de rótulos sobre qualquer adoecimento. O que posso dizer é que cada tempo da sociedade tem seus adoecimentos e peculiaridades. Tenho pensado ultimamente que a família, conceito e instituição, está vivendo uma crise, assim como as relações. E não falo isso com sentidos catastróficos. Que ótimo que a família e as relações estão abaladas por outros modelos de afetos e convívio, por possibilidades de sermos outras histórias, afetos, corpos, sexualidades, relacionamentos! Quem sabe, meu livro tenha sido uma tentativa de falar sobre isso.

A linguagem de seus contos, de extrema intensidade, parece mostrar algum tipo de sufocamento de emoções a que somos cotidianamente compelidos, bem como o enquadramento que a família e a sociedade nos desejam impor.  Essa foi uma de suas preocupações ao escrever seu primeiro livro?

Não sei se uma preocupação, mas, talvez, uma tentativa produtiva (e literária) de produzir uma ficção que alcance liberdades e/ou processos de libertação. Incomodam-me modelos violentos e impositivos e suas regras e normas, de como as pessoas e suas famílias devem e precisam ser. No livro, elaborei alguns fragmentos de recordações da infância e adolescência, vivências minhas e de algumas poucas pessoas próximas. E cenas mais recentes, as quais ficcionei até com surrealidades imprecisas, para tentar perfurar o cotidiano das tradições, especialmente as familiares, heterocisnormativas-brancas e torná-las/deixá-las feridas. E gostei de escrever para iniciar processos de abrir-fechar feridas.

No conto que dá título ao livro, temos o drama do protagonista a se identificar com muitos daqueles que se descobrem com orientação sexual diversa da maior parte das pessoas. Pode a literatura contribuir para que deixemos de ser um dos países mais homofóbicos do planeta?

Espero que sim. De alguma forma que ainda me parece loucura. E loucura, para mim, é potência e sonho, com muitos sentidos vivos. Acredito que a literatura chegue a lugares peculiares e únicos das pessoas que a alcancem, se houver entrega. No entanto, é preciso pensar também se os livros que contam diversidades e famílias com afetos não-normativos (norma heterocisbranca-classe-de-rico) humanizam tais personagens. Se a humanidade da história escrita alcança o leitor/leitora que vive outra realidade, diferente daquela. Se produz sentido que o desperta, de alguma forma. Se permite “confirmar no leitor a sua humanidade num exercício de alteridade”, como disse Leocácia Aparecida Chaves, em capítulo do livro Literatura e Direitos Humanos.

A figura materna ocupa relevante papel em algumas de suas histórias, mas também ela acaba sendo vítima de uma sociedade tardiamente patriarcal e machista, nem sempre suportando suas próprias neuroses e transmitindo outras tantas a seus filhos. Algum caminho para subverter essa dolorosa realidade?

Eu e minha mãe ainda somos um sintoma complexo. Sempre a vi, assim como descrito na pergunta, uma mulher marcada por uma sociedade patriarcal e machista. Essa é uma travessia conturbada para mim, que sou bicha-herança dos nomes horríveis que ela, a mãe, acumulou, quando só quis ser feliz e livre. Mas penso que toda família carrega tais heranças, aspectos muito únicos nas singularidades de suas dinâmicas familiares, sufocadas por representações e significados construídos culturalmente (como cada sujeito e cada família vive de modo especialmente singular as produções da cultura do machismo e a homotransfobia, por exemplo). Não consigo pensar o feminino que sou, hoje, sem refletir sobre o feminino da minha mãe, que ficou à mercê dos rótulos violentos, porque foi ‘mãe solo’ e carregou uma fome que não queria. E queria mesmo me ver alimentado, mas também me queria másculo-macho, capaz de casar com uma mulher e produzisse filhos que salvassem uma família degenerada pelas violências do machismo e da homofobia. Foi por isso também que rompi com todas essas tradições. Foi por isso que comecei a inventar para mim outras histórias e, assim, outras ficções para o meu eu e para as personagens que convivem comigo. Mas é claro que amo a minha mãe!

Qual papel tem a educação para que possamos construir uma sociedade menos pautada pela reprodução de preconceitos enraizados e mitologia religiosa?

Acho que eu entraria numa redundância sem fim ao falar de educação nesses termos, de processos educativos libertadores. E pensando assim, penso agora em Paulo Freire e Foucault e as práticas da liberdade e protagonismos. As ideias de que pensamentos e reflexões críticas estremecem a estrutura das instituições normatizantes/normatizadoras. Não consigo pensar educação sem pensar em emancipar sujeitos e subjetividades.

Novos livros a caminho? Pensa em dedicar-se às narrativas mais longas, como o romance?

Tenho um romance anterior ao livro de contos. Um romance que esteve finalista do Prêmio Sesc de Literatura, em 2018. Está aqui comigo, quieto, aguardando uma possibilidade de ser publicado, algo que faça sentido a nós dois. Finalizei, recentemente, outro romance, que agora estou revisando. É um livro muito desejado pelas minhas inquietações, ainda sobre famílias vivas e afetivas, para além da norma e que também tentará contar, pela ficção, um tema que é muito presente e angustiante para mim, como psicólogo e escritor: a adoção. Falo de uma adoção através da lei, para além das romantizações, dos rótulos, buscando aprofundar a presente criminalização violenta da pobreza que circula em muitos discursos privilegiados, de rupturas sofridas por crianças vivendo sem serviços de acolhimentos, para além de uma adoção vista como política pública que, segundo alguns desejos, existe apenas para atender o desejo de homens e mulheres que não conseguiram ser pais biológicos e pretendem reproduzir tais modelos de famílias biológicas encaixando – e muitas vezes violentando – crianças reais, nos vazios cavados por suas expectativas e fantasias.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

 

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