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Querida desconhecida

Confesso que a sua missiva permaneceu por abrir durante vários dias, quase perdida entre outra correspondência e os jornais que leio sempre com atraso. Pensei tratar-se de publicidade: no rosto do sobrescrito lia-se um nome, não o meu ou de um qualquer destinatário, antes o nome da remetente -uma mulher – desenhado a azul real, numa caligrafia expansiva e ondulante a traço forte. Suspeitei tratar-se de uma oferta promocional relativa a alguma criação artística ou artesanal suscetível de poder valer de presente nesta quadra natalícia. Apesar de ter titilado a minha curiosidade, a caixinha de quatro bombons Genaveh, a nata da chocolataria luxemburguesa, que acompanhava a missiva permaneceu incólume a coroar a pilha de jornais.

Acabei por abrir o sobrescrito por descargo de consciência. Pensei então que seria um cartão de Boas Festas, o primeiro da temporada. Mas não. Era um cartão de agradecimento, um obrigado em inglês e em maiúsculas. Abro-o. Dear Stranger. Querida desconhecida. Sou eu. A leitura das suas linhas apertadas no papel fez-me recuar até março passado, ao domingo da eleição do presidente russo. Deixe-me contar-lhe como eu vivi as coisas.

Tinha dado um salto ao supermercado e ao regressar encontrei a rua literalmente inundada de compatriotas seus. Vivendo a paredes meias com o consulado do seu país, cruzo-me por vezes com russos vindos de França, da Alemanha ou da Bélgica que me perguntam onde estacionar e se o estacionamento é gratuito. Por vezes, cedo-lhes o meu espaço de estacionamento – os abutres multadores estão sempre à cata de incautos, sobretudo dos que não adivinham regras que não estão à vista… Mas nunca pensei que houvesse tanto russo no Luxemburgo e arrabaldes!

Todos vinham votar. Muitos vinham também para protestar contra o regime e contra a guerra na Ucrânia. No lado oposto à minha casa estacionara de madrugada uma autocaravana com uma grande faixa de protesto a toda a volta. Em cima do meio-dia, alguém empunhou um megafone. Junto aos serviços diplomáticos, respondendo ao apelo da associação RUHelp viam-se pessoas com cartazes, STOP PUTIN – seria a querida desconhecida? A polícia, presente naquelas paragens desde o dia anterior, manteve-se discreta. Junto ao consulado, o ambiente estava aparentemente sereno, pelo menos aos olhos de um observador exterior. Havia novos e velhos, jovens, crianças, bebés e cães. Estava calor, demasiado calor para a época. As filas continuavam a engrossar. Havia cerca de três horas de espera até chegar às urnas.

Quase à porta de casa, eu com as compras e a minha vizinha com o cão comentávamos o espetáculo e dizia-me ela à boca pequena «Estás a ver, se tivéssemos organizado uma venda de café, chá e bolinhos, teríamos feito um bom negócio…». Imaginei-me numa fila, a ter de esperar três horas para votar ou para arranjar pão ou o que quer que fosse. À torreira do sol. Ou sob um frio de rachar. E foi aí que o óbvio me aplicou um murro no baixo-ventre dando-me uma imperiosa vontade de ir à casa de banho. Despedi-me à pressa da minha vizinha e entrei em casa. Depois, corri à cave à procura de um pedaço de cartão velho. Peguei num marcador preto grosso e improvisei um cartaz escrito com letras garrafais em inglês e em alemão «Precisa de uma casa de banho? Tem sede? Bata à porta!». O cartaz foi recebido com uma salva de palmas.

E vem agora, querida desconhecida, agradecer-me a minha ajuda, agradecer-me por ter aberto a porta de minha casa a quem, a favor ou contra Putin, precisasse de aliviar algumas das suas necessidades básicas. Uns dias mais tarde. alguém me deixou um vaso de orquídeas à porta com um bilhetinho assinado, mas sem endereço do remetente.

Porque é que o fiz? Um rasgo de generosidade? Talvez. Uma generosidade teve origem nas minhas tripas. Foram elas que, impondo-se ao meu cristão amor ao próximo ou à sagacidade do meu intelecto, me ajudaram a antecipar as necessidades de outrem. É que até a capacidade de sentir empatia é física, corpórea e ditada pela carne…

Diz-me no seu postal que queria mostrar que há russos que são contra a guerra e contra o regime. Embora o saiba, agradeço-lhe por essa sua vontade de o manifestar. Também eu sou contra a guerra. Na Ucrânia ou em Gaza, no Sudão ou na Síria – tenho um filho, um neto, um irmão, três sobrinhos e não quero vê-los despachados para nenhum matadouro. Também eu sou contra os regimes totalitários. E não hesitarei em afirmá-lo a alto e bom som sempre que necessário.

Nada sei da sua história pessoal. Ignoro como aqui chegou, como vive e como se sente nesta Europa, sempre desconfiada relativamente ao seu país. No meu, Portugal, diziam os antigos que a única coisa boa vinda do Leste era o Sol… e creio que não se referia apenas aos espanhóis e aos franceses. Para bom entendedor meia palavra basta.

Tenho vários amigos oriundos do ex-bloco de Leste. O grande alargamento da União Europeia foi há já 20 anos. Depois disso, outros países se juntaram. Entretanto, o mundo mudou e a Europa também.

Em jeito de confidência, em torno de um café, são vários os que confessam estar profundamente desiludidos com o modelo de sociedade europeu e o rumo que as políticas europeias estão a seguir. «A fachada é bonita…», dizem «…o capitalismo tem coisas boas…, mas são cada vez mais as pessoas que ficam para trás… Tanta conversa sobre diversidade e inclusão e vivemos numa sociedade de gavetas incapazes de falar umas com as outras, tal é o medo de se ser politicamente incorreto e ferir suscetibilidades. Liberdade de expressão?? Não sei … parece reinar uma forma subreptícia de pensamento único – quer se trate da crise COVID, das questões de género, dos automóveis elétricos, da transição ecológica, da política estrangeira, da guerra da Ucrânia, de Israel e da Palestina, etc. Liberdade de imprensa? Os meios de comunicação social estão nas mãos de um punhado de magnatas para quem a verdade conta como peanuts. Faz lembrar os tempos do totalitarismo soviético…» – dizem com cinismo e humor e alguns matizes, consoante se trate de checos, polacos, eslovacos, croatas, lituanos, etc.

Nem todos. Por exemplo, dizia-me uma amiga romena que não tinha saudades nenhumas de, com dez anos, ir às cinco da manhã para a fila do pão (os pais iam para outras filas). Nem de saber que a família poderia ser presa por ouvir a Rádio Europa Livre. «É verdade que no meu país continua a haver muita corrupção e demasiada gente a viver muito abaixo do limiar da pobreza. Mas antes, era pior.».

Oiço-os a todos com curiosidade. Esta escuta é-me, por vezes, dolorosa: sou compelida a olhar para a Europa de um ângulo que, à partida, não é o meu – o de um ceticismo amargo, de uma lucidez que torna a hipocrisia visível a olho nu e de total descrédito na retórica europeia quanto aos valores humanistas que apregoa.

Não é a Europa. É o mundo, digo para mim própria, numa tentativa de autoconsolação. É o mundo, um mundo em que tudo está arquitetado para que nos levar a confundir o essencial e o acessório, bem como a ignorar as nossas próprias necessidades básicas e as dos outros. Estamos talvez anestesiados, apalermados por demasiadas horas à frente de ecrãs que nos confortam o ego e o desespero a venenos de consumo imediato, notícias falsas, mexericos soezes e manipulações abjetas, os dedos amolecidos no prolongamento dos telemóveis.

Aterroriza-me a incapacidade de diálogo, a ausência de pragmatismo, a ganância e a inabilidade de lograr consensos dos nossos governantes. E, bichos dóceis, irremediavelmente mamíferos, somos liderados por condutores de rebanhos que, para sanar conflitos, levam para as mesas de negociações precisamente aquelas honestíssimas propostas que sabem de antemão ser inaceitáveis para o oponente. E diga-me: não deveríamos estar todos aos gritos no meio da rua a clamar pela paz em vez de estarmos a brincar aos natais?

Sabe como é que me estou a sentir agora? Como o conferencista no monólogo de Anton Tchékhov sobre os malefícios do tabaco, que não é conferencista, nem sequer quer proferir conferências, muito menos sobre os malefícios dessa planta, e que acaba por não dizer coisa com coisa- enfim, por só falar das suas próprias misérias.

Sinto-me miserável neste mundo bipolar e maniqueísta. Sinto-me aterrorizada por ouvir cada vez mais perto o rufar dos tambores da guerra. Sinto-me perplexa por ter deixado de ter certezas e por constatar que isso não é visto com bons olhos.

Parafraseando uma mensagem que alguém publicou há uns dias nessa indispensável teia de informações que é o Facebook, não será um sinal de boa saúde estar bem adaptado a uma sociedade profundamente doente. Então… será que estou doente ou de boa saúde? Seja como for, devo estar doente, não acha?

Diz-me no seu postal que a porta de sua casa está aberta para mim. Irei bater-lhe ao ferrolho lá para o Ano Novo. Tomaremos um chá. E conversaremos. E permita-me que seja eu a agradecer-lhe agora a maravilhosa oportunidade que me proporcionou: a de escrever a alguém que, por não me conhecer nem ter expetativas a meu respeito, me permite exprimir-me em plena liberdade.

Eduarda Macedo

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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