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Pontapé de saída

A mãe colocou-o na palma da sua mão que ajeitou em forma de concha para que o mantivesse, além de confortável, protegido pelo aconchego dos seus cuidados. Ele, colocou-lhe as mãos delicadas sobre o seu rosto macio, que acariciou com ternura, e com mil cuidados limpou-lhe as lágrimas dizendo-lhe,
“Mãe, não chores…Não fiques triste porque um dia vais estar bem…

Depois, ela lentamente fechou os olhos ainda húmidos, soprou na palma da mão ao mesmo tempo que disse…

“Abelhinha voa, voa,
Voa muito e sem canseira
Corre atrás do teu sonho
Em Lisboa
E o nosso amor contigo,
Aqui na Madeira”

Acorda Dolores, é apenas um sonho. A vida tem outras realidades e os sonhos não se concretizam.
Está na hora de te levantares, de bateres a porta atrás de ti e ires descarregar as tuas frustrações, a tua raiva, os teus medos e os teus anseios, contra a calosidade da existência, da única maneira que esse teu coração de oiro te permite fazer ao te vingares do mau fadário com que a vida te apoquenta, na fúria que incutes no trabalho.

Quando regressou a casa ontem à noite, Dinis não vinha sozinho. Ultimamente quase nunca anda sozinho, e, no entanto, perdido entre a solidão de um vicio que em passos de algodão se foi chegando até se apoderar da sua vontade e da sua vida, não deixa de ser um homem importante para os filhos.
O alcoolismo veio junto com a dureza do trabalho, dos dias difíceis e pesados, do modo de vida e de cultura de um povo a quem não foram dadas outras alternativas, outras condições, outras oportunidades. Reminiscências de quase cinquenta anos de ditadura onde os pobres são sempre os que, mesmo contra a sua vontade, sustentam o regime fascista e dele são suas vítimas.

Mas Dinis apesar de lutar no dia a dia contra um vicio que o apanhou nas malhas e nas artimanhas da vida, tem orgulho nos filhos, e no menino, aquele que chegou em quarto lugar ao mundo, quando já não era esperado, esse, não só para Dinis, bem como para Dolores, Hugo, Elma e Katia é a estrela que veio iluminar os dias difíceis e sombrios em que a pobreza teima se manifestar, e por isso há-de crescer e ser homem, e será sempre o menino da família. O pai que adora futebol, sonha com o futuro e as luzes da ribalta, que acredita, haverão de iluminar o menino.

Quando Dolores regressa de um longo dia de trabalho, a casa, a família, a pobreza e a força de encontrar momentos de alegria onde pouco se tem. Os churrascos de vez em quando, ao domingo, e onde do pouco se faz muito, muito de alegria, de união familiar, de amor e vontade de seguir em frente, enfrentando as dificuldades com força de quem acredita que vencer é não desistir.
Do terraço, do que a vista pode alcançar, o mar, o fogo de artificio que corre o mundo, e os sonhos a nem sequer ultrapassarem para lá da linha do horizonte que a vista alcança e que se fecha a cada dia que chega ao fim, até um outro dia recomeçar e com ele, a esperança.

E o menino que joga à bola com os seus amigos. Que corre numa destreza veloz, como quem corre atrás do mundo para o alcançar. E irrita-se e chateia-se e até chora, porque fez o trabalho todo à sua equipa e os seus amigos da bola não souberam, não foram capazes, de concluir em glória, todo o seu esforço, toda a sua habilidade. E porque está chateado, quando o jogo acaba não vai para casa, refugia-se junto ao poço coberto com paredes de cimento, e descarrega a sua fúria com os fortes pontapés na bola, que na sua perspetiva de criança, fazem até abanar as paredes do poço. Indaga a si mesmo, de vez em quando, se um dia destes a parede não podendo resistir mais à fúria dos seus pontapés na bola, que contra ela se esbarra constantemente, começará a abrir brechas por todo o lado.

Ouve ao longe a voz da mãe que grita o seu nome. A bola há-de esbarrar mais meia dúzia de vezes contra a parede do poço até que lhe responda.

De todas as vezes que o menino chateia a mãe que o repreende, é quando a bola aborrece mais os outros do que a ela mesma. As pedras no meio do caminho, o senhor Abílio que resmunga ao ter que sair do carro para arrumar as pedras que fazem de baliza para os seus jogos de futebol improvisados. “Raios parta o moço, “resmunga entre dentes, enquanto que por trás da cortina as irmãs atraídas pelo buzinão e os resmungos do senhor Abílio, dizem para a mãe, que da cozinha indaga, “O que se passa lá fora?” “Oh é o menino, outra vez a jogar na rua e a colocar as pedras no meio do caminho,”
O menino senhor Abílio, não é o moço.

E um dia, o menino, qual abelhinha desenfreada por entre os seus adversários da bola, haverá de ter outros voos bem mais altos, e por isso, voará até Lisboa onde pela primeira vez, mesmo depois de muitas dificuldades da vida, muitos percalços e muita força para os ultrapassar, a mãe há-de ficar de coração partido ao deixá-lo na boca do Leão, que sendo o rei da selva, o irá preparar para o futuro, como sendo um rei também. E a mãe, diz-lhe, “Filho, se é isso que tu gostas, luta, luta porque tu vais vencer.” E ele, limpa-lhe as lágrimas e responde, “Mãe, não chores, não fiques triste porque um dia vais estar bem.”

E depois, levantar de manhã e ir à luta. Reconhecer que tudo o que irá conquistar se deve às suas origens. Onde nasceu, com quem cresceu, as suas amizades, a sua família. E será um vencedor.
Afinal, Dolores, os sonhos também se concretizam.

O menino fez-se homem. A família está orgulhosa. O pai também haveria de estar. Não só pelo que o menino conquista, mas pelos princípios de humildade e pelos valores familiares e de amizade que aplica no seu dia a dia.

O menino, está pronto para o pontapé de saída…

António Magalhães

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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