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Onde para a tropa – Primeira parte

Vais para a tropa.

Pois claro, vamos lá então.

Apresento-me no Regimento de Lanceiros de Lisboa, Polícia do Exército, na calçada da Ajuda.

A tia Ana tinha dito à minha mãe que havia lá um sargento, que me livrava da tropa.

-Só tem que lá ir por uns dias, – disse a tia Ana de Lisboa à minha mãe, – só para marcar ponto, e logo, logo, está de volta a Felgueiras.

Quem me visse agora teria dificuldades de visualizar esta, apesar de tudo modesta revelação, mas nessa altura além de muito magro eu era também muito pálido.

Quando cheguei à porta de armas do Regimento de Lanceiros, dois tipos faziam guarda, enfiados numa farda militar impecavelmente limpa e engomada, e o capacete branco com as letras PE a preto, atarraxado na cabeça.

Como o capacete lhes assentava quase na cana do nariz tinham que levantar bem a cabeça para puderem ver o mundo fora dele.

Um deles perguntou-me

– O que é que tas aqui a fazer pá?

E o outro, sem que eu tivesse tempo para responder, disse.

-Alguém te foi buscar a casa para te trazer para aqui?

Ao que eu respondi, – Não, eu vim cá ter…

Entreolharam-se de maneira sarcástica até que um disse,

– És mesmo estupido, vens para aqui de livre vontade, – e eu percebi que ele falava pelos dois – toca a entrar lá para dentro. Vais direitinho à Isabel Queiroz do Vale.

Ainda pensei argumentar que não foi por livre vontade não senhor que eu lá fui parar, mas fiquei tão curioso com essa tal isabel Queiroz do Vale que achei desnecessário começar um argumento que estava condenado ao fracasso.  Os meses que se seguiram foram a prova disso.

Afinal a tal Isabel,  era a barbearia do regimento onde dois sargentos na idade da reforma, pensei eu na altura, um deles muito magro e alto, o outro a contas com uma barriga que mais parecia um bombo do agrupamento de Zés Pereiras, tosquiavam os recrutas como se fossem ovelhas.

Calhou-me o gordo.

Pegou na máquina de pente um, e só para se divertir abriu uma espécie de estrada na minha cabeça. Depois olhou-me através do espelho que para desgosto de quem tinha a infelicidade de o ter à sua frente, rasgou um sorriso de orelha a orelha, sorriso aparvalhado apesar de tudo, e disse.

– Fica-te a matar.

E de certa maneira eu achei que ele até tinha razão por que naquele momento senti-me morrer ao prever o meu novo look depois dele acabar a tortura que tinha iniciado com aquele primeiro desbaste.

Estive tentado a dizer-lhe, – não há necessidade de me torturar desta maneira porque de acordo com a tia Ana eu praticamente só venho aqui para marcar ponto. É que… bem vê, eu não fui feito para estas coisas devido à minha palidez, e muito provavelmente à falta de peso requerida pelo exército Português, necessária às exigências mínimas para o peso de um soldado.

Mas da maneira que o gordo me agarrava o cachaço para me inclinar a cabeça para a frente, no sentido de poder passar a máquina pela nuca, eu percebi que o melhor era guardar certas informações para quando chegasse o momento certo.

Quando ele terminou o seu trabalho, que lhe estava a dar imenso gozo, isso ele não fazia questão de esconder, eu olhei-me no espelho e senti que o mundo tinha iniciado ali naquele momento uma enorme conspiração contra mim. Desconhecia, no entanto, os motivos.

Na primeira semana senti que estava preso a um sonho, a fazer uma corrida, onde apesar dos desesperados esforços para ganhar velocidade, o corpo retesado, parecia não sair do sítio. Quanto mais os esforços maior a frustração.

Levava murros no peito por tudo e por nada.

– De onde é você, soldado?

– Sou de Felgueiras…!

– Felgueiras, e onde fica essa merda?

– Cerca de 50km do Porto

– 50 km o caralho.

E… bum… mais um murro no peito.

Ou,

– Você sabe quem eu sou, soldado?

E eu a pensar, não faço a mínima ideia.

– Você sabe quem eu sou?

E os gritos a furarem-me os tímpanos, e a voz forte e atemorizadora a fazer os seus estragos na boca do estômago e a despoletar uma fraqueza estranha nas pernas.

E eu, preso nos meus pensamentos, incapaz de expressar em palavras sonoras o que ia dizendo a mim mesmo.

“Como posso eu saber se até este preciso momento nunca o tinha visto mais gordo ou mais magro.”

– Tenente-coronel Montalvão Machado.

E… pum… mais um murro no peito.

Fazem isto com uma normalidade que esta gente do exército português nem precisaria de balas para ganhar uma guerra. Faziam-no à murraça no peito.

De repente surge-me no pensamento o agora tão saudoso Raúl Solnado, – ele não mata, mas desmoraliza muito.

De maneiras que, as primeiras semanas foi uma consumição para evitar tudo quanto não fossem outros recrutas.

Quanto mais se evitassem, especialmente os graduados, menos murros no peito se levava.

Um dia ao sair de uma esquina, (porque as esquinas não produzem só mulheres da má vida, carteiristas, ou amantes do crime) encontro um velho sargento.

Nessa altura nem eu nem qualquer outro recruta sabíamos distinguir um sargento de um general.

O sargento parou subitamente e eu, atrapalhado como fiquei, fiz logo a continência e disponibilizei de imediato o peito para o murro da praxe.

No entanto, o sargento nem se moveu. Até parece que ficou pregado ao chão.

– Soldado, não consigo passar. Tenho um tronco à minha frente.

Aflito, olhei em redor, mas não via nada que obstruísse o seu caminho.

Será que o tronco era eu? Pouco plausível. Magro e pálido como eu era nem sequer um ramo era a expressão melhor. Talvez um pequeno galho.

Pesado e sonolento, quase preguiçoso, voltou a retorquir,

-Retire-me esse tronco do caminho.

Desesperado clamei logo por uma ajuda divina.

“Ó meu Deus, ó meu Deus, o que quer ele dizer com um tronco? Pensa, pensa, o perigo desta guerra não está nas balas do inimigo, mas sim nas metáforas que esta gente inventa.

O nervosismo e a ansiedade apoderaram-se de mim e eu comecei a dançar de um pé para o outro, de olhos ávidos à procura de uma metáfora que encaixasse na perceção de um tronco, vista pelo sargento.

Aquele formigueiro que tinha na barriga e o aperto na bexiga enquanto dançava de um pé para o outro, de repente desapareceu.

Encontrei.

À frente do sargento estava um fósforo.

– Eureka.

Peguei no fósforo do chão.

O sargento sem mais delongas continuou o seu caminho depois de fazer uma ligeira continência. Eu respondi à continência e aproveitando que tinha a mão perto da testa limpei o suor que escorria em bica.

Três semanas de martírio e torturas depois, o tal sargento que me haveria de livrar da tropa tinha passado a informação à tia Ana. Não podia fazer nada enquanto eu não baixasse à enfermaria.

– E que digo eu na enfermaria? Que sou magro e pálido? Dir-me-iam provavelmente, – não fumes daquela merda que faz rir e dá fome.

Mas um dia, o pelotão sai para uma c. a. m.

À medida que corríamos calçada da Ajuda abaixo, de farda, botas pesadonas, G3 a tiracolo e uma mochila com dois calhaus lá dentro, alguns espertalhões iam passando a informação de peito inchado, tentando incutir o medo aos outros, para esconderem os seus próprios medos.

– C. a. m. corrida até à morte,

E dos lábios nascia-lhes um sorriso daqueles de desafiar soco, mas mal chegados a Belém já os fígados lhe saiam pela boca, a meio de caminho entre Belém e Algés pareciam locomotivas a largar fumo pelas orelhas e narinas. Sucumbiam ao chegar a Algés.

Sei bem do que falo porque passei por isto tudo, com a exceção de sucumbir à chegada a Algés, por isso, quando o resto do pelotão que ainda se mantinha de pé, regressou ao quartel, sem sequer ter descansado, eu regressei com eles.

Mas no regresso já não era eu que corria. O subconsciente tem e faz coisas extraordinárias.

O furriel apercebeu-se. Colou-se ao meu lado e gritou-me aos ouvidos,

– Dê-me a sua arma soldado, eu alivio-lhe a carga.

Mas uma fininha e distante voz do meu subconsciente repetia aos meus ouvidos o que me haviam dito no dia em que me entregaram a G3.

“A partir de agora soldado esta arma é a sua namorada. Não a largue, não a deixe ao deus dará, não deixe que mais ninguém lhe ponha a mão em cima.

É claro que ninguém quer que lhe ponham em cima da namorada o que quer que seja, por isso, mesmo sem forças para lhe responder verbalmente, porque as guardava para a corrida, apertei a alça da G3 com força e não deixei que ele ma tirasse. Ele percebeu, e mais tarde diria em frente de todo o pelotão que eu tinha um fortíssimo espírito de sacrifício.

Mas na altura lembro-me de ter pensado, “antes morrer a tentar do que desistir”.

Quando entramos no quartel já a corrida tinha acabado e eu ainda corria em círculos, incapaz de parar as pernas que apesar de exaustas tinham ganho o balanço da corrida.

Quando finalmente me deixei cair por terra o meu amigo Sérgio veio segredar-me ao ouvido.

-Ora cá está a tua oportunidade de baixares à enfermaria.

Mas eu que, apesar de todas as indicações em contrário me sentia satisfeitíssimo por não ter desistido, por ter tido o raro privilégio de ter experimentado na pele que a força de vontade supera qualquer fraqueza ou dificuldade do corpo, como poderia dizer com convicção que precisava de assistência médica quando o pior já eu tinha feito.

O Sérgio insistiu,

-Sentes-te tonto, mal consegues respirar e até parece que vais morrer.

De maneiras que eu comecei a arfar, ao mesmo tempo que levava a mão ao peito.

Tive que improvisar tão bem que de facto, quando o Sérgio já gritava por ajuda eu me sentia mesmo mal.

Levaram-me para a enfermaria.

Um outro sargento bem mais novo dos que eu estava habituado a ver, grandalhão e forte de tronco, espetou-me uma injeção nas nádegas mesmo antes de eu ter tempo para me queixar.

Vinte e quatro horas depois, duas injeções próprias para rinocerontes, e uma raio x aos pulmões, o sargento grandalhão veio dizer.

– Estás apto a passares-te ao fresco daqui.

Como eu tinha cumprido com a minha parte, ou seja, baixei à enfermaria tal como sugerido, assumi que o tal sargento que me iria livrar da tropa já tinha cumprido com a sua parte. Por isso, com um entusiasmo que apesar de tudo me esforcei para que fosse comedido, respondi com um sorriso de dentes cerrados e lábios abertos,

– Para casa, quer o meu sargento dizer…?

Lá do alto dos seus olhinhos piscos e semicerrados, o sargento olhou-me com um certo ar de fúria e desprezo à mistura, quebrou pela cintura até ficar com a sua bocarra perto do meu ouvido, e gritou-me de uma maneira que se deveria ouvir em Almada,

– Para o seu pelotão sua Amélia de merda.

E…pum, lá veio um murro no peito.

Do meu, um metro e setenta e cinco centímetros de altura senti-me encolher cerca de um metro e setenta, e dos cinco centímetros que ainda me restavam, aventurei-me a dizer-lhe,

É que…bem vê meu sargento, foi-me dito para eu baixar à enfermaria e que a partir daqui…

A partir daqui já não consegui acabar a frase. O sargento deitou a mão ao coldre da pistola Walther, (Walter) e com os olhos a soltarem-se-lhe de órbita, voltou a gritar,

– Passe-se ao caralho daqui para fora sua Amélia ou dou-lhe três tiros na testa que lhe arrebento os miolos.

Peguei no meu encolhido metro e setenta, juntei-o com os cinco centímetros que me restavam e saí dali aterrorizado, a pensar comigo mesmo, “Raios parta, o que é que o exército português terá contra as Amélias…”

Mais tarde disse ao Sérgio,

– Vamos esquecer essa tontaria de ficar livre da tropa. Fico cá até ao fim.

E ainda bem que a coisa se desenrolou dessa maneira porque foi a mais louca, mas também imperdível, experiência da minha vida.

Três meses depois passo da calçada da Ajuda para o regimento de Lanceiros do sul, em Évora.

(CONTINUA)

(Retalhos do Quotidiano páginas 77 a 83)

António Magalhães 

 

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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