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O sonho de Deus

Isto é que são horas?, estrilei.
Deus arregalou os olhos
e disse-me toque-toque
com o indicador girando na têmpora
cofiou o bigode finíssimo
que se se enrolou em mim
como o homem-elástico
e começou a suar caganitas
só depois me respondeu:
Son los primeros
efectos del planeta
que se está calentando!
Acalentando? Nião té compriendio!
Oh, Salvador salva-me da dor
se fosses português
pintavas ovos moles
não relógios moles
o inseto era uma abelhuda
e eu a lambuzar-me obsceno
de polpa vermelha da romã
na minha boca sumarenta.

A raposa de bengala assoma e diz:
olhó passarinho
e lá se vai o fruto nómada da árvore
a modéstia é o orgulho a chegar por uma escada oculta
cada vez que um gajo morre nunca é o mesmo
a justiça dos homens é pior do que o crime
o único uniforme que não me causa comichões
é uma consciência tranquila
mas mudo todos os dias de cuecas
mesmo durante o confinamento.

Cai o dia e as minhas sombras
deixaram de me morder os dedos
e devoram o crepúsculo
cerro os espelhos de par em par
transvio-me, astralizo, desemborco
a luz-espaço-tempo
são um e o mesmo superfluído lambda
o caos ocaso acaso
a dispersão aleatória
o cosmos o contrário
a proporção dourada
o dada não é nada
supro o supra-real
a entropia cresce
o sexo é força forte
a imaginação fraca
a maçã que cai
os amantes de capuz
o enigma do cachimbo
um broche, a noiva despida
as mademoiselles pinóquianas
a bailarina azul tropeçando
a foda é chata se o túmulo púrpura
é a única ambição do guerreiro
é como passear descalço
na grande avenida rasa
nem vê os nenúfares florescerem na orla
das entranhas da poetisa perdida.

Fui ver a flor ao jardim
Deus acordou
e eu perguntei:
esqueceste de pagar
a conta da luz outra vez?
Desce o pano.

José Luís Correia
JLC27042020

(Pintura: “Sleeping Old Man and Girl”, Michiel Sweerts, c. 1650)

 

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