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O senhor Santos e os rapazes

O senhor Santos enfiou as mãos nos bolsos pensativo, e de olhos postos no chão começou a andar de um lado para o outro, caminhando vagarosamente enquanto os rapazes completamente estáticos o observavam pacientemente à espera de que ele concluísse a sua palestra. Repentinamente parou, rodopiou sobre o pé esquerdo e ficou de frente para eles. Abriu a boca para falar, mas deteve-se novamente a um curto silêncio quando deixou descair o olhar nos pés da pequenada. Coçou a cabeça, deu mais meia volta pensativo e voltou a rodopiar ficando uma vez mais de frente aos miúdos. Coçou novamente a cabeça e finalmente disse,

-Valha-nos Deus… essas sapatilhas…

Quase automaticamente, os rapazes inclinaram a cabeça para observar os seus próprios pés. Franziram a testa não compreendendo qual era a preocupação do senhor Santos em relação às sapatilhas.

-As sapatilhas…? – Perguntou o pequeno Quaresma, – que têm as nossas sapatilhas?

-Além de velhas, coçadas, tortas e sujas? Bem, além disso estão também rotas.

A rapaziada fez um brevíssimo silêncio e depois, quase em uníssono soltaram uma gargalhada que ecoou pelo campo pelado, cedido pela junta de freguesia da Lusitânia, tão estridente que os pássaros que repousavam nos canos das árvores ladeando o campo, partiram em debandada assustados.

-Ó senhor Santos, nós até jogamos descalços. – respondeu Cristiano com um sorriso que deixava transparecer um espaço entre os dentes da frente, quase tão grande como cada buraco que tinha nas suas sapatilhas.

O senhor Santos, com uma mão no bolso esquerdo e com a outra a coçar uma vez mais a coroa da cabeça, não respondeu por palavras, limitou-se apenas a apertar os lábios num gesto de alguma preocupação, abanou o pescoço ligeiramente e rendido à boa disposição da rapaziada também ele soltou um sorriso rasgado quase de orelha a orelha e finalmente concluiu a sua palestra.

-Rapazes, é o nosso primeiro jogo do torneio, não podemos começar este torneio a perder. Os rapazes da junta de freguesia de Hispânia são favoritos. Nós não sendo favoritos, somos melhores do que eles. Disso não tenho dúvidas rapazes, disso não tenho dúvidas. Concentrem-se e joguem em equipa e podemos ganhar isto… Olhem, até vos digo mais…se não perdermos este jogo, logo à noite organizo uma churrascada no quintal lá de minha casa.

Os rapazes rodaram a língua pelos lábios como se estivessem já a saborear o frango de churrasco e também eles rasgaram um sorriso de satisfação.

Disfarçadamente William disse baixinho entre dentes, para o Guerreiro que se encontrava ao seu lado.

-Se fosse bacalhau com natas…

-Comes franguinho e no fim do jogo ainda temos que ir assaltar a capoeira das galinhas da dona Lídia… – respondeu-lhe o Moutinho a brincar com ele. João Mário olhou-os de lado lançando-lhes um olhar reprovador por se estarem a referir à capoeira da mãe.

O senhor Santos aproximou-se, os rapazes formaram um círculo à sua volta, uniram as suas mãozitas frágeis e pequenas à mão grande e protetora do senhor Santos, como se passassem entre si uma energia comum e de equipa que depois se espalhava por cada um deles, soltaram um grito de guerreiros e dispersaram para as suas posições no campo de terra batida.

Começou o jogo. Um aglomerado de pessoas espalhava-se pelas extremidades do campo apoiando as equipas. Pessoas da freguesia de Lusitânia e da freguesia de Hispânia.

Apesar da rivalidade normal e saudável de cada um dos apoiantes e das suas equipas, havia uma boa relação entre as duas populações e por isso, à medida que os miúdos iam jogando, entre gritos de incentivo e manifestações de alegria, acendiam-se braseiros aqui e ali, atiravam-se com carnes temperadas de véspera para as grelhas onde por baixo as brasas ao mesmo tempo que iam grelhando as delícias devidamente marinadas, soltavam uma nuance de fumo que espalhava um aroma de fazer crescer água na boca a todos quantos, naquele dia de festa, porque sempre que havia torneio havia festa, ali se deslocavam para apoiar a sua equipa.

Os putos sabiam bem que quando terminasse o jogo, de carnes grelhadas só ficavam uns vestígios aqui e ali colados às grelhas onde foram assadas, e até esses vestígios já só seriam minúsculos pedacinhos de um estorrico da carne que teve dificuldade de se despregar da grelha. Os garrafões de vinho, tanto de um lado como do outro, e as garrafas de cerveja, continuariam a rolar muito para lá do jogo, mas isso os putos já não podiam tirar algum proveito uma vez que o seu amor ao futebol, e a sua condição de crianças, não lhes permitia ir assim tão longe. Por isso, limitavam-se a pôr todo o seu empenho no jogo, à medida que o aroma das carnes grelhadas, da parte dos Lusitanos, lhes fazia lembrar a promessa do senhor Santos, “… até vos digo mais…se não perdermos o jogo, logo à noite organizo uma churrascada no quintal lá de minha casa.”

E que jogo. Tanto os rapazes da Lusitânia como da Hispânia se debateram numa furiosidade intensa, mas não maliciosa, qual guerreiros de uma grandiosidade sem igual. Os Lusitanos marcaram primeiro. Depois os Hispanos empataram. Os Lusitanos voltaram a marcar, e o raio dos Hispanos voltaram a empatar. Os Lusitanos apesar de não favoritos, como dizia o senhor Santos, eram melhores e por isso, trabalhando em equipa foram sempre aguentando a pressão dos Hispanos e do seu favoritismo, com uma grandeza que os confundiu. Mesmo assim, os Hispanos voltaram a marcar. Os Hispanos estavam em vantagem no marcador. Os Lusitanos nunca desistiram. A poucos minutos do fim, uma falta na área dos Hispanos.

O herói de sempre foi chamado a marcar. Colocou a bola a jeito, três passos atrás, um para o lado.

Formou-se a barreira à sua frente. O pequeno Pepe, com o seu sotaque Brasileiro, gritou-lhe…

-Lembra do churrasquinho, pelo amor de Deus…!

Cristiano, que já havia marcado os outros dois golos, fechou os olhos por alguns segundos e ajudado pelo aroma das carnes assadas que ainda pairava no ar, pensou para os seus botões…” Esta é pelo churrasquinho, esta é pelo churrasquinho…”

Depois, o arbitro apitou e o rapaz partiu para a bola com tamanha concentração que ao chutar soube, assim que a bola saiu do seu pé, que o trajeto que ela levaria iria garantir a churrascada para toda a sua equipa, lá no quintal do senhor Santos, uma vez que, mesmo não ganhando o jogo, a promessa era para que não o perdessem. E a bola, não só obedeceu à magia que o rapaz impunha nos seus pés, bem como à concentração e precisão com que, entre o chutar e a execução final, o golo estava já garantido.

Foi uma explosão de alegria, não só da equipa dentro de campo, bem como todos os outros jogadores que estavam sentados no banco de suplentes. O senhor Santos deu um pulo, cerrou o punho e desferiu um murro no ar, libertando um sorriso que demonstrava a satisfação, não só pelo golo, bem como pelo resultado, que apesar de um empate, era um bom resultado. Ele que até era um homem de poucos sorrisos.

E o senhor Santos, no fim do jogo foi dar um abraço a cada um dos seus jogadores, e mesmo ciente de que a sua promessa iria desequilibrar o seu orçamento para aquele mês, disse.

-Vá, vão tomar banho e logo à noite apareçam lá por casa para a churrascada e para a limonada.

Seis dias depois…

Uma espécie de névoa mormacenta elevava-se do asfalto como um espesso tapete de calor a pairar sobre a estrada à medida que a carrinha de caixa aberta avançava pela longa reta em direção à freguesia do Pequeno Magrebe, onde se iria disputar o segundo jogo dos Lusitanos.

O senhor Ilídio amavelmente disponibilizou a sua Nissan para levar a rapaziada de uma só vez. O senhor Santos ainda tentou metê-los a todos no seu velho Volvo 245 GL, mas depois de muitas tentativas e muita algazarra por parte dos miúdos, que se esforçavam o mais que podiam para caberem dentro do carro, que apesar de comprido, não chegava para todos, teve que se arranjar outra solução. O Beto ainda sugeriu que se passasse uma corda entre as duas janelas das portas da frente e uma outra nas de trás e se atasse alguns deles ao tejadilho, mas o senhor Santos achou a ideia tão disparatada que de braços cruzados, a passar o polegar da mão direita distraidamente pelos lábios, e um olhar meio perdido em busca de soluções, levantou-lhe o sobrolho ligeiramente e deixou escapar um sorriso tímido e meio disfarçado, a quase não se notar, como um sinal de que o ouvira e que ao mesmo tempo ignorou a sugestão.

De maneiras que lá iam eles, naquela manhã mormacenta, o senhor Ilídio ao volante, o senhor João Costa no meio e o senhor Santos a seguir, braço fora da janela, com a mão a procurar uma posição que lhe trouxesse o vento formado pelo andamento da carrinha, em direção à sua cara. Na parte de trás da carrinha, na caixa aberta, protegida pelos taipais devidamente inspecionados antes de se fecharem, ia a rapaziada aos cuidados do senhor Justino e do senhor Ricardo.

A seguir a carrinha, uma quantidade bastante considerável de motocicletas, em alguns casos a carregar uma família de quatro pessoas. Marido, esposa, um filho/a sentado no depósito da mota e o outro/a entalado entre a barriga da mãe e as costas do pai.

A equipa precisava de apoio e a aldeia não se poupava a esforços nem desculpas de mau pagador, para seguir a rapaziada. Família, amigos, vizinhos, conhecidos e até o senhor Sousa presidente da junta. Todos para dar força à pequenada.

As últimas motorizadas levavam um atrelado com os merendeiros, os garrafões do vinho e as garrafas de cerveja.

Chegados ao campo da junta de freguesia do Pequeno Magrebe, a rapaziada saltou da carrinha cheios de vontade de disputar o jogo.

O Bruno, o mais alto e mais moreno de todos, quis saber qual era o prémio, se ganhassem aquele jogo. Ninguém esperava outra churrascada pois tinham bem consciência de que a amabilidade do senhor Santos no primeiro jogo, havia comprometido o seu orçamento até ao fim do mês, ele que apesar de um bom engenheiro, em todos os sentidos da palavra, treinava os miúdos sem que lhe pagassem qualquer dinheiro, tendo muitas vezes que despender do seu próprio bolso em muitas ocasiões. Deslocações, gasolina, lanches, (às vezes) etc.

-Durante uma semana haverá direito a rebuçados e chocolates da minha mercearia, completamente de borla…

Respondeu o senhor Justino prontamente, antes que o senhor Santos se comprometesse, pela sua bondade, a coisas que lhe trariam aperto orçamental, pois era homem de cumprir a sua palavra.

O Adrien disse baixinho entre dentes, “De borla? Mas isso já nós temos…” ao que o André lhe atestou uma cotovelada disfarçadamente para que o senhor Justino não se apercebesse do estratagema que os rapazes tinham, para lhe fanarem alguns rebuçados e chocolates, enquanto uns o distraíam e outros metiam a mão nos frascos das guloseimas lá na loja.

Quando começou o jogo já os apoiantes dos Lusitanos haviam estendido as mantas e disposto os merendeiros pois a partida disputava-se mesmo à hora do almoço…

Foram precisos quatro minutos para que uma vez mais o herói da equipa desencantasse um momento de inspiração e magia, e num voo quase rasteiro, de cabeça enfiasse a bola dentro da baliza. A partir daí o jogo, por parte dos Lusitanos, não foi o melhor. Seria da carrinha de caixa aberta? Talvez do vento mormacento que lhes bateu na cabeça no caminho de Lusitânia para o Pequeno Magrebe. Fosse de que maneira fosse, a vitoria por 1 a 0 foi importante para garantir a participação no torneio, mas o senhor Santos não estava muito satisfeito pela pobre exibição dos miúdos. Tinham capacidade para fazer muito melhor. No entanto o jogo teve alguns momentos, muito poucos, onde mostraram a sua grandeza. O Patrício, moço meio tímido e reservado, fez uma defesa de se lhe tirar o chapéu. Se é um facto de que a magia do Cristiano acabava sempre por salvar a equipa de certos embaraços, também não é menos certo que o conjunto dos jogadores tinha momentos individuais que beneficiavam o coletivo.

No regresso a casa, ninguém se atreveu a falar na tal semana de rebuçados e chocolates, de borla, lá da mercearia do senhor Justino.

Conhecendo o senhor Santos como conheciam, os rapazes tinham a plena noção de que teriam que trabalhar mais para depois merecerem a sua simpatia em termos de prémios de consolação.

O melhor era não o aborrecerem muito e nos próximos seis dias, até se defrontarem com a equipa da junta de freguesia da Pérsia, que se prepararem muito melhor pois a continuação no torneio pode depender de uma vitoria contra os rapazes Persas…

(A saga continua…)

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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