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Milton Blay: analista arguto das contradições do mundo contemporâneo

Formado em Direito e Jornalismo, com mestrado em Economia e doutorado em Política, pela Université Paris 3, Milton Blay nasceu em São Paulo, mas vive em Paris desde 1978. Por seu trabalho na rádio Jovem Pan de São Paulo ganhou o prêmio Esso de melhor programa radiofônico, nos anos 1970. Trabalhou na revista Visão, nos jornais Folha de S.Paulo e Jornal da Tarde, nas rádios Capital, Excelsior e Eldorado. É correspondente do Grupo Bandeirantes em Paris. Por 15 anos foi redator-chefe da Rádio France Internationale, assim como presidente da Associação da Imprensa Latino-Americana na França. É autor dos livros Direto de Paris (2014), A Europa Hipnotizada (2019) e coautor de O Brasil no Contexto:1987-2017 (2019).

Qual a principal motivação que o levou a escrever A Europa Hipnotizada?

Criado dentro da cultura europeia, judeu laico, militante dos direitos humanos e jornalista, tendo vivido os tempos tenebrosos da ditadura militar no Brasil, quando perdi amigos nos porões do DOI-CODI, eu não podia ficar calado diante da expansão da extrema-direita nacional-populista. Afinal, esse movimento coloca em cheque a democracia liberal e os valores ocidentais herdados do Iluminismo em países centrais do Velho Mundo, onde moro. Diante disso, a Europa parece desarmada, quase que hipnotizada (de onde o título do livro). As eleições de Trump, Bolsonaro, o Brexit, o risco de termos uma presidente neofascista na França, Orban na Hungria, me levaram de força para o computador, como se denunciar, compreender e tentar explicar o fenômeno fosse uma necessidade óbvia e premente. Dei-me conta também, em várias palestras no Brasil, da necessidade de informação, vista a absoluta desconexão entre o brasileiro de classe média e o que se passa no mundo.

Em que se diferencia o ultranacionalismo de hoje e aquele que desencadeou a Segunda Guerra Mundial?

Há tantas diferenças quanto semelhanças.  Hoje, como nos anos que antecederam a Segunda Guerra, a grande força dos partidos de extrema-direita está no sucesso em unir as diferentes linhas ideológicas: antiparlamentarismo, aspiração a um regime autoritário dirigido por um líder carismático, ultranacionalismo, xenofobia, racismo, defesa dos povos vítimas das elites, conservadorismo, exacerbação do sentimento religioso, em meio a um clima de crise econômica e política.  Nos anos 1930, a Europa estava despedaçada pela Primeira Guerra, da mesma forma como atualmente a União Europeia se encontra à beira do caos. Estas são algumas das semelhanças. Quanto às diferenças: ao contrário do que acontece hoje, os partidos de esquerda e de extrema-esquerda mobilizavam as classes populares, num mundo dividido em dois, entre capitalistas, sob a égide dos Estados Unidos, e comunistas, liderados pela União Soviética. As crises não tinham por origem a globalização, não existiam as redes sociais para disseminar o ódio, as fake news praticamente se limitavam à propaganda. O avant-guerre foi um período de polarização direita-esquerda, enquanto hoje vivemos um período de fragmentação entre os incluídos e os excluídos da globalização. Os dois momentos são de crise profunda e grande instabilidade, mesmo se uma nova guerra mundial parece excluída no curto prazo, em razão do poder destruidor das armas à disposição das superpotências, que, no entanto, desenvolvem armamentos nucleares de alta precisão e alcance limitado que possibilitarão conflitos futuros.

Após tantos anos no Velho Continente, onde vive há 41 anos, ainda se sente estrangeiro?

Costumo dizer que o correspondente internacional é um ser híbrido, esquizofrênico, que vive simultaneamente várias realidades. É uma condição sine qua non para ser um bom correspondente. É preciso viver a realidade do lugar onde você mora, inserí-la num contexto mais amplo, mundial, e ao mesmo tempo viver o mais perto possível do país para o qual você transmite a notícia. O correspondente internacional precisa avaliar a importância da informação e transportá-la para os seus receptores, colocando o fato em perspectiva e avaliando as suas consequências. Nesse aspecto, um correspondente é necessariamente um ser inserido na sociedade e ao mesmo tempo estrangeiro. No âmbito íntimo não é diferente: sinto-me meio-estrangeiro na França e também no Brasil. Tanto assim que só agora, após 41 anos vivendo em Paris, peço a nacionalidade francesa.

Num dos trechos de A Europa Hipnotizada, você diz: “Quem defende valores de exclusão são cúmplices do autoritarismo antidemocrático.” Qual a razão do avanço da extrema direita em nossos dias? Como explicá-la, sobretudo quando aparentemente legitimada pelo voto?

A extrema-direita se aproveita do sufrágio universal para chegar ao poder, através da falsa promessa de romper com a “velha política”, e, então, questionar as liberdades civis e econômicas. Em bom português, se aproveita da democracia para chegar ao poder e governar de acordo com o autoritarismo arcaico. Os nacional-populistas se aproveitam do jogo democrático para matar a democracia. Ninguém pode negar que os novos ditadores (termo utilizado pelo historiador português José Pacheco Pereira) tenham milhões de votos, sendo eleitos legalmente e que, desta maneira, cumpram uma das condições fundamentais da democracia. Mas nem por isso são democratas, pois não preenchem o outro requisito: o primado da lei, o respeito aos direitos humanos, das garantias individuais e coletivas. Ao contrário, mudam as leis para compatibilizá-las com o autoritarismo. Além disso, é sempre bom lembrar que Hitler e Mussolini chegaram ao poder pelo voto, mas nem por isso deixaram de ser ditadores. A democracia representativa tradicional está moribunda. E hoje, mais do que nunca, precisa se reinventar para sobreviver. As elites intelectuais têm enorme dificuldade em aceitar a realidade, enquanto as elites financeiras preferem simplesmente ignorá-la em benefício próprio. Nossa democracia é a democracia da desconfiança, na qual os governos são acusados de incompetência, impotência, imoralidade e não-representatividade.

Em vários países do mundo se convive atualmente com a inexistência de uma imprensa livre e no Brasil temos hoje um governo que a todo instante tenta agredir a liberdade de imprensa. Algum antídoto para isso?

Em sua primeira coletiva de imprensa, após a oficialização do Brexit, Boris Johnson fechou as portas de Downing Street aos representantes de jornais considerados indesejáveis. Os jornalistas responderam boicotando a entrevista. Viraram as costas e foram embora. Quiseram mostrar que não se pode transigir com a liberdade de imprensa. Trump expulsou o setorista da CNN na Casa Branca; houve uma grita geral e ele foi obrigado a voltar atrás. Face às fake news das redes sociais, as vendas dos jornais americanos sérios – NYT, Washington Post, entre outros, cresceram. Esses exemplos mostram duas coisas: 1) que a imprensa deve continuar a fazer o seu trabalho informativo e investigativo de forma livre, equilibrada e profissional; 2) que é preciso responder às agressões de maneira individual e coletiva.  A falta de decoro do presidente brasileiro, chegando a xingar a mãe de certos jornalistas que nada mais fizeram que o seu trabalho, é totalmente inadmissível. Tão inadmissível, aliás, quanto as risadas dos profissionais da imprensa diante dos insultos. Os jornalistas e os proprietários dos meios de comunicação precisam reagir, inclusive judicialmente, antes que seja tarde demais. Um governante não tem o direito de agredir, assim como não tem o direito de abandonar uma coletiva por se sentir pressionado ou não gostar de uma pergunta.

Como enxerga a questão dos refugiados na Europa e a incapacidade da maior parte dos governos em lidar com ela?

Esta, talvez, seja, ao lado da mudança climática e da concentração da riqueza, a questão mais aguda que se coloca a nós. As populações os rejeitam, a solidariedade inicial transforma-se em repulsa e os políticos, prisioneiros do voto, tendem a baixar os braços. Ao pensar na próxima eleição e não naquelas milhares de vidas ameaçadas, preferem jogar o problema para o vizinho e assim por diante. Outros levantam muros. Esquecem ou fingem esquecer que somos todos filhos, netos, bisnetos de refugiados. Numa palestra que dei na CIP, várias pessoas perguntaram por que nós ocidentais e nós judeus tínhamos de assumir o fardo dos refugiados. Como judeu, respondi que esse era o nosso dever, porque todos os que ali estavam eram refugiados por mãe, pai, avós, bisavós. E que ali estávamos unicamente porque nos receberam em algum lugar. Mas nós éramos diferentes; replicaram. Diferentes porque queríamos nos integrar. Eles não.As pessoas que me questionaram nunca tinham visto um refugiado, conversado com um deles ou mesmo lido um livro sobre a questão. Eu trabalho como voluntário em uma ONG que ensina francês a refugiados e demandantes de asilo. Tenho, portanto, condições de afirmar, sem medo de errar, que tudo o que eles querem (com raríssimas exceções) é se integrar e ter a oportunidade de construir uma vida tranquila.

E a construção de um muro, proposto pelo presidente dos Estados Unidos, na fronteira entre os Estados Unidos e o México?

Muros não são solução, nem na fronteira entre Estados Unidos e México, nem nos Balcãs, nem em Israel. Estamos perdendo o que nos resta de humanidade e isso é terrível. Quando Trump diz America first, Bolsonaro grita Brasil acima de tudo, o que salta aos olhos é que estamos repetindo slogans nazistas. O pior é que muita gente aplaude.

Num dos capítulos de A Europa Hipnotizada, você diz que “Segundo o filósofo francês Bernard-Henri Lévy, há uma fadiga da democracia somada ao ódio das elites. Os estados democráticos, diz ele, avançam, mas na direção errada, na direção do populismo, que os vienenses de pré-1914 chamavam de ‘apocalipse alegre’.” Você acredita que a esquerda não terá mais chance de avanço no mundo? 

As esquerdas perderam o trem da história, não souberam tirar benefício da fragilidade econômica causada pela globalização, fechamento e transferência de usinas para países periféricos, agravamento das desigualdades, redução do nível de vida das classes médias. Foram incapazes de encontrar soluções em seu próprio terreno, a economia. O espaço foi ocupado pelos populistas e pela direita. Klaus Schwab, fundador do Fórum Econômico Mundial de Davos, durante muito tempo considerado o templo da globalização feliz, lançou um alerta pela remoralização da globalização, insistindo na necessidade de lutar contra a fadiga das democracias e rearmar os cidadãos. Christine Lagarde, ex-diretora-geral do FMI, tirou o sinal de alerta, preocupada com “a inclusão dos povos na globalização”. Paralelamente, as esquerdas não deram respostas a temas sociais, como o nacionalismo, a identidade nacional, imigração, a religião, discriminação da comunidade LGBT, a ideologia de gênero, a defesa da família tradicional, a falocracia, que se fizeram o leito da extrema-direita. A globalização mostrou uma fratura política e financeira entre os “somewhere”, aqueles que vivem enraizados em seus países ou regiões, e os “anywhere”, aqueles que evoluem livres de quaisquer amarras, num mundo mundializado. Esta cisão supera o antagonismo direita-esquerda e alimenta o populismo.

Você também afirma que países como “França, Alemanha, Áustria, Holanda e Itália são palco hoje do avanço da extrema-direita.” O que representa esse avanço para a Europa e o mundo?

A extrema-direita nacional-populista tem como meta matar a democracia. O ocidente, enquanto realidade geopolítica e expressão de um conjunto de valores universais, está passando por uma crise profunda. O modelo democrático precisa se renovar urgentemente. O futuro da ordem internacional tornou-se frágil, atingindo em cheio o espaço europeu de integração. A própria existência da União Europeia está em perigo. Pode implodir a curto prazo. Os partidos de extrema-direita, nos países citados e em outros, são todos eurocéticos. Militam pelo retorno à soberania nacional. Vale lembrar que desde a sua criação, o bloco garantiu paz e prosperidade, num continente marcado pela extrema violência no curso da história, sobretudo do século 20. Mas se os europeus precisarem ter medo para defender a União Europeia, então podemos ter a certeza de que ela não sobreviverá. Num artigo publicado no jornal Público, de Lisboa, a politóloga portuguesa Teresa de Sousa prevê que “se os europeus deixarem o futuro da União nas mãos de uma tecnocracia incapaz de olhar para fora do seu pequeno reino de mordomias e de intrigas, que acredita possuir a verdade e que não é capaz de perceber o mundo, então, o risco de perderem definitivamente o seu lugar na História é imenso.”A guinada para a direita autoritária, racista e antieuropeia acontece no momento em que há desafios imensos a serem enfrentados em âmbito mundial, que só têm soluções no quadro da cooperação internacional. Normalmente, tudo isso exigiria mais Europa. Os populistas, contudo, sugerem o retorno do Estado-nação, mais muros, vários “Brexit”.  Uma eventual implosão da Europa significaria o fim do Estado providência e de uma ideia de sociedade mais voltada para o bem-estar do homem, com respeito aos valores fundamentais. O nacionalismo inglês, que alimentou o “Brexit”, é uma versão relativamente soft do nacionalismo de rosto mais assustador que varre a quase totalidade dos países europeus. Na França como na Alemanha. No Leste como no Oeste. No Norte como no Sul. Os EUA – a outra metade do Ocidente – estão ainda protegidos pela solidez da sua grande democracia, mas Trump, com seu desprezo pela Constituição e a sua diabolização dos outros, são o pior dos sinais. A democracia liberal está a ser infectada por ideias e valores que não são compatíveis com ela – e que ameaçam destruí-la silenciosamente. É este o combate mais importante dos nossos dias.

A que atribui a perda de espaço dos grupos de esquerda na política mundial? Em que as esquerdas mais tem pecado?

Ao meu ver, as esquerdas pararam no tempo, enraizadas na luta de classes. A vitória do capitalismo fez com que as esquerdas se perdessem. Outros fenômenos sociais vieram se juntar às preocupações dos cidadãos, diante de uma certa passividade da ala progressista. Com exceção dos países nórdicos, os governos democráticos não foram capazes de resolver as desigualdades econômicas e sociais. Entre essas, as desigualdades de gênero, de religião e outras formas de discriminação.

Como analisa o fenômeno Bolsonaro e as consequências de seu governo para a consolidação da tênue democracia brasileira?

É totalmente contraditório falar em Bolsonaro e, ao mesmo tempo, em consolidação da democracia brasileira. Bolsonaro e os seus simpatizantes não são democratas; ao contrário, representam um imenso risco para a sobrevivência da fragilíssima democracia liberal brasileira, que propositadamente e de má fé é confundida com a esquerda, o comunismo, o marxismo cultural. Nosso país nunca conheceu um governo verdadeiramente de esquerda, apesar dos benefícios sociais criados por FHC e Lula. Inclusive o PT governou como os governos europeus de centro. Costumo dizer que o Brasil de hoje não vive em democracia, mas sim numa ditadura insidiosa, uma ditadura dissimulada. O discurso do ex-secretário da Cultura, Roberto Alvim, reproduzindo Goebbels, é exatamente o que pensa Jair Bolsonaro, que, aliás, não reprovou o conteúdo, mas apenas a citação do responsável pela propaganda nazista e a simbologia do décor. Os fenômenos Bolsonaro, Trump, Orban, Salvini, nos ensinam que não se deve subestimar os ignorantes nem os indignos.

Diante da ascensão de ideologias extremistas por todos os cantos do planeta, crê acertado dizer que o bicho humano ainda se deixa seduzir por mitológicos salvadores da pátria, redentores imediatistas, pautando-se por mitos de barro?

A escalada dos extremos mostra que hoje, mais do que nunca, o homem precisa de mitos, mesmo que seja de pés de barro. Os seus eleitores precisam acreditar que há respostas muito simples para problemas hipercomplexos. O homem precisa sonhar e hoje só os nacional-populistas são desonestos o suficiente para afirmar que tudo se resolve com uma varinha de condão. Uma parte da população, em desespero, se joga nos braços desses embusteiros.

Como enxerga a política de Israel em relação à Palestina?

Infelizmente Israel, desde Ariel Sharon, trocou a paz pela segurança. É verdade que os atentados diminuíram, em parte graças à construção de muros. Mas esta estratégia tornou a paz praticamente impossível, enterrando a ideia de dois Estados, lado a lado. Israel tem sido governado pela direita radical, que abandonou as tentativas de chegar a acordos com os palestinos, em favor do status quo. O que  funcionou no curto prazo, mas que parece condenado no longo prazo. A esquerda israelense, os trabalhistas de Rabin e Peres desapareceram. Por outro lado, para os palestinos, Israel transformou-se no último país colonialista do mundo, que como os demais acabará por cair. Como demonstra o jornalista Ari Shavit, em seu fabuloso livro “Minha Terra Prometida”, historicamente judeus e palestinos têm direitos históricos sobre aquelas terras. A discussão sobre quem estava lá antes, ganha ares de debate sobre o ovo e a galinha.

Diante do quadro político mundial, é possível ser otimista?

Ser otimista é um sentimento que pouco tem a ver com a realidade. Tem gente que consegue ser otimista nas situações mais terríveis. Eu tendo para o pessimismo. Contudo, é sempre bom lembrar que nada é eterno. Eu pertenço a uma geração, nascida no pós-guerra, que acreditava que o mundo bipolar, dividido em duas zonas de influência – soviética e norte-americana – era perpétuo. Ledo engano. Tudo evolui, não necessariamente para melhor, mas é certo que estamos sempre em mutação. Por isso é que eu escrevo, para tentar acreditar que as coisas podem mudar, que amanhã eu possa publicar “A Europa acordou: a escalada da democracia”. Um amigo dizia: “Le pire n’est jamais sûr”.

Algum balanço a fazer, ao longo de mais de quatro décadas de atividade jornalística?

Nesses tempos da pós-verdade, das redes sociais, deixo aqui uma lamentação: já se fez melhor jornalismo e menos fake news.

 

Sobre o autor da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator de jornalista.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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