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Luiz Arthur: a cena como instrumento vital de resistência

© Catarina Paulino

Em mais de duas décadas de profissão, Luiz Arthur consolidou-se com um dos atores mais respeitados e premiados de Minas Gerais. Professor na Escola de Teatro da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e fundador da Cia Teatro Adulto, entre as montagens em que atuou estão Noites Brancas, Hamlet, A Morte de DJ em Paris, Mão na Luva, O Beijo no Asfalto, A Falecida, Servidão, Fala Comigo Doce Como a Chuva e Homem-Bomba. No cinema, esteve presente em Batismo de Sangue, Qualquer Voo, Amor & Cia, Circo das Qualidades Humanas, Samba Canção e Bala na Cabeça. Na televisão, participou das telenovelas Fascinação, Caminho das Índias e Belíssima, assim como da minissérie JK. No monólogo  Homem-Bomba, escrito por Cynthia Paulino, seu mais recente trabalho, faz um mergulho intenso nas contradições e desequilíbrios que tanto têm marcado a humanidade.

Quando a descoberta do teatro?

Muito cedo, ainda menino, já sabia que queria ser ator. Nunca tive dúvidas. Só não sabia como. Via tv, filme, série, novela e me via fazendo aquilo. Só aos quinze anos, vi teatro adulto pela primeira vez. Tive um choque. Tarcísio Meira e Glória Menezes ali na minha frente, atravessando parede imaginária, jogando com a plateia. Endoidei. Foi uma descoberta!

Segundo Eugênio Kusnet, o duplo, ou seja, o desdobramento do ator na representação, não implica frieza ou mesmo comportamento cênico estereotipado. Qual é o seu olhar em relação ao duplo? Como se processa para você a criação de um personagem? 

O estereótipo se impõe quando há falta de trabalho ou quando o ego grita. Às vezes, são os dois juntos. Sou desde sempre um operário do teatro e falo isso com orgulho. Trabalho incansavelmente, de maneira obcecada, cirúrgica. Gosto do movimento limpo, preciso, milimetricamente coerente com a compreensão que vai surgindo, sendo refinada em cada dia de ensaio. Nunca tive problema neste quesito. Já o ego, ah, esse é difícil de domar. No meu caso, nunca o ego foi maior do que meu respeito pelo palco. Até porque os deuses do teatro me ensinaram muito cedo a ter o pé no chão. Eu estava no primeiro espetáculo. Tinha um bife enorme que eu fazia com paixão. De verdade, como deve ser. Um dia, fiquei me achando. Aí numa sessão, fazendo lá, só na forma, deu um branco e ferrou tudo. Não tinha ideia em que planeta eu estava. Um segundo de ego exacerbado e tudo vai abaixo. O ego destrói o trabalho do ator. Agradeço todos os dias por esse branco. Não há um espetáculo sequer, desde então, sem que a motivação seja o ineditismo. Acredito no trabalho árduo para aguçar a escuta. O ator deve levar para o palco a energia do texto.  O ator personifica o discurso, dá corpo a ele. Estar em cena é um privilégio. 

Você e Cynthia Paulino fundaram, em 1996, em Belo Horizonte, a Cia Teatro Adulto. Que princípios os nortearam ao fundá-la?

Uma admiração enorme pelo trabalho um do outro, a vontade de criar juntos e, sobretudo, uma necessidade de não ficar esperando convite para experimentar. Cynthia se formou primeiro do que eu. Eu entrei na escola de teatro logo em seguida. A gente se conheceu lá. Ela começou a trabalhar no mercado de imediato. Começamos a namorar e não nos desgrudamos nunca mais. Eu virei rato dos ensaios dela. Acompanhei quase todo o processo do seu primeiro espetáculo e o assisti várias vezes da coxia. Ficava lá aprendendo, quietinho.  No meio do meu curso, casamos. Formei, filha nasceu, fizemos um Nelson Rodrigues juntos, que foi um ‘boom’ em BH e chegou uma hora que queríamos mesmo ter o poder de escolha desde o início. É chato ser proponente de projeto, lidar com a burocracia, mas parte importante da resistência vem quando você é obrigado a fazer, com ou sem dinheiro. Atuamos em outras produções, aprendemos com elas, mas sempre pesquisando para descobrir o que realmente queríamos levar para a cena.

Sabemos que o ato de fazer teatro não é o de acomodar-se ou permanecer numa zona de conforto. Ao contrário, a carreira teatral é repleta de percalços e superações. Quais as maiores dificuldades que enfrentou ao longo da existência da Cia Teatro Adulto?

A frustração é, paradoxalmente, o que mais te trava e o que mais te ensina. Você dá um sangue danado para realizar algo, vira noite fazendo projeto, junta equipe, sonha alto, corre atrás e, de repente, não rola. Nós já alugamos espaço, certos que teríamos incentivo público em reconhecimento ao investimento que fizemos do bolso e nada. Fomos ficando anestesiados com certas coisas. Produzimos quase todos os nossos espetáculos do bolso e já passamos muito sufoco por causa disso. Agora, o tanto que aprendemos é imensurável. A dor te ensina. O que tentamos apenas é não errar a mesma coisa. Erramos muito, continuamos errando, mas erros novos. E os acertos foram surgindo. Aprendemos a fazer muito com pouco. Acho que essa mistura de tudo motivou organicamente a utilização de elementos mínimos, a restrição do espaço de atuação, que hoje é uma marca muito forte em nosso repertório. Nunca deixamos de estar em cena. Nunca optamos pela zona de conforto e não será agora, mesmo em tempos sombrios, que faremos diferente.

Vivemos um momento bastante delicado no país. Performances, peças e exposições de arte são reprimidas e censuradas. Como tem sido manter acesa a chama do teatro em meio à onda conservadora que parece nos invadir?

Eu e Cynthia somos professores de uma escola de teatro que é referência na cidade. Muitos alunos estão assustados. Na verdade, quem não está? Ser professor é, mais do que nunca, um ato de fé. O sagrado que envolve o rito teatral cura. A ignorância bate todos os dias na porta e nossa função é fazer refletir, questionar o status quo com uma poética cênica certeira. É uma força poderosa que atravessa as pessoas. Então, é importante, mais do que nunca, escutar de verdade, enxergar o entorno. Respirar para saber o momento certo de dizer o que precisa ser dito, com inteligência. A cena é para nós um instrumento vital de resistência, de persistência. Calar-se, jamais.

O que o levou a tratar em Homem-Bomba da questão da postura humana em relação aos animais? Você e Cynthia Paulino consideram-se defensores dos direitos dos animais?

Temos quatro gatos que são como filhos. Certamente, se tivéssemos espaço em casa, condições de cuidar, adotaríamos cachorros, vacas, bezerros, galinhas, porcos. Defensor dos direitos animais, talvez, seja muito, porque há pessoas e instituições que dedicam sua vida a essa causa. É um ativismo em tempo integral e que tem minha admiração sem limites. Ainda sonho com este lugar. Enquanto não é viável, a gente segue conscientizando as pessoas com o nosso trabalho no palco. Foi uma necessidade. Cynthia não come carne há oito anos. Eu há dois. Não dá pra ficar imune quando tomamos ciência do sofrimento animal. O “ser ou não ser” do Hamlet, não à toa, está no Homem-Bomba: “a reflexão faz de todos nós covardes!”. Não quis mais tocar a vida com viseira, achando que carne nasce na prateleira do supermercado.

Catarina Paulino

Homem-Bomba resulta numa dramaturgia dinâmica, que acaba revelando uma estética polissêmica. Faz o público refletir sobre várias questões de cunho moral, sobre a compaixão, a consciência humana e a crueldade. Segundo Cynthia Paulino, a pesquisa se deu por meio das histórias de O Médico e o Monstro e Dr. Frankenstein. Pode nos contar como se deu a elaboração de sua dramaturgia?

Cynthia é uma leitora voraz. Uma pesquisadora sobre desigualdades, desequilíbrios universais, energias contraditórias e muito mais. A espiritualidade tem sido um modus operandi para a sua criação dramatúrgica. Tenho sorte de ter uma dramaturga em casa. Ela fez uma adaptação de Frankenstein para o teatro há alguns anos, com ex-alunos, que reafirmou esse olhar sobre o diferente, o não aceito pela sociedade. A ideia de encenar a saga de Jekyll e Hyde é antiga e casou perfeitamente com nossas inquietudes atuais. O monstro não é alguém distante de nós. É nosso duplo. O monstro nos habita e cabe a cada um saber cuidar, compreender, educar a sua sombra. Vemos no país pessoas que se denominam ‘homens de bem’ e que trazem um discurso completamente sanguinário. De que tipo de ‘bem’ estamos falando? É uma jornada necessária essa, a de enfrentar-se, de compreender que o mal não nos é estranho. Podemos sucumbir se o transformamos em algo distante de nós, porque nós criamos a desordem e o caos que está aí. Se você estuda a história da humanidade sabe disso. O demônio é o próprio homem, o devorador, aquele que dizima seus semelhantes. O discurso contra o diferente é um exemplo disso. Cynthia cresceu com um pai alcoólatra e passou a vida vendo aquele homem lutar contra o vício, contra a sua natureza agressiva. Ele frequentava a igreja, rezava, buscando fora dele a cura e a redenção. Desde criança ele era para ela o pai e o monstro, então hoje é com todo o coração que ela se debruça sobre isso, sobre buscar uma resposta para questões que habitam os seus pesadelos.

Um elemento conflitante, representando o terror vivido pelos animais, projeta-se com insistência, através de um facão, em HomemBomba. Como o espetáculo foi pensado em relação ao espaço e aos elementos de cena?

Uma figura próxima de um açougueiro foi se firmando durante todo o processo de construção da dramaturgia. Mas não podia ser um açougueiro qualquer. Precisava ter o lado do cientista, do médico. E que faz de si sua própria cobaia. Cynthia sugeriu o uso de luvas. Fui para a sala de ensaios, sozinho, e, de repente, vi que precisaria de um cutelo. Queria um instrumento da maldade materializado ali. Uma ameaça velada. Quando a personagem pergunta: “e se fossem homens? E se?” Certamente o cutelo à mostra faz o público encarar a verdade de que tanto foge. O cutelo acaba com a ‘assepsia de supermercado’ que nos protege da verdade: comemos animais que sofreram uma morte horrível, que tiveram uma vida horrível e engolimos toda essa dor.

Nosso modo de interagir com os animais a que pretensiosamente chamamos irracionais é primitivo, sanguinário, pautado pela barbárie. Vê alguma possibilidade de mudança a curto e médio prazos?

Acabei de fazer cinquenta anos. Foram necessários quarenta e oito para enxergar o óbvio. Não julgo ninguém. Ainda não. O homem foi adestrado para acreditar na fábula da carne e se isentar da culpa. Animais pensam, sentem dor e possuem inteligência superior. Todos. Basta um passeio pelo Google, mas a maioria das pessoas ainda não quer a verdade. Torço por uma mudança de conduta. Vegetarianos e veganos antigamente eram vistos quase como aberrações. Seres de outro planeta. Agora, têm voz. É interessante observar o número de crianças que hoje se recusam a comer carne. Algumas só comem porque são forçadas pelos pais. Há uma nova consciência chegando. Nisso nós acreditamos.

No teatro, temos sempre o personagem esperando pelo ator para lhe dar vida. Que características de um personagem mais o seduzem?

Nunca escolhi um papel sem acreditar piamente que o faria bem. É algo intuitivo. E acredito que a intuição só funciona por causa do trabalho. Já recusei papéis por não acreditar que eu era a melhor escolha e quando vi o outro fazendo, ah, foi uma sensação muito boa. Não era mesmo pra mim. Tenho tido sorte. Não sei dizer com certeza o que me seduz em uma personagem. É o todo. Ela, a narrativa, suas transformações. Como ator, gosto de mudar timbres de voz, buscar o desequilíbrio, alterar meu eixo. É certo que personagens tortas física e moralmente nos ajudam a compreender melhor o mundo que nos rodeia e são um excelente trabalho e desafio para o ator.

Você ganhou o seu primeiro prêmio como ator em 1995, seguido de vários outros. Eles tiveram algum significado especial? Como vê a crítica teatral contemporânea?

Ganhar prêmio é legal quando é merecido. É um afago, com data e hora. No dia seguinte, é só o trabalho que importa. Colocar-se num pedestal é um erro. A mediocridade reina. Sinto-me premiado em especial quando tenho retorno de alguém que admiro de verdade. Quando percebo que o público compreendeu a essência que motivou meu processo criativo, é o combustível que me motiva a trabalhar ainda mais. Com relação à crítica, sinto muita falta de um viés colaborativo, que tente aprofundar questões para além de uma apreciação meramente pessoal.

Novos projetos para 2019? É possível resistir fazendo teatro de qualidade em tempos de ascensão do mercado e do neoliberalismo?

A cabeça está sempre a mil e resistência é a palavra de ordem.  Minha geração será testada como nunca. Cynthia está trabalhando agora na adaptação de um conto da Katherine Mansfield,  A Casa de Bonecas. É uma viagem pela infância, seus desafios e, para ela, um projeto de resgate, de mergulho em sua própria estória, da sua família. Ela vai dirigir três atrizes, eu vou produzir e dar todo o apoio que precisarem. A ideia é estrearmos ainda esse ano.  E, claro, seguir com Homem-Bomba e com Coisas Boas. É crucial que continuemos em cena, seja como for. Como sair de cena se o palco é nossa casa? Sigamos!

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, professor e jornalista.Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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