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Leis portuguesas ainda vigoram em Goa

Parte significativa da arquitetura legal em vigor em Goa é de origem portuguesa e funciona há 60 anos sem tradução oficial, o que fere a Constituição indiana e faz do dia-a-dia dos juristas goeses “um horror”, dizem especialistas.

Em outubro último, uma tradução oficial do Código Civil português de 1867 foi finalmente publicada na Gazeta Oficial do Governo de Goa, colocando um ponto final a uma questão levantada por um jurista goês conceituado, que começou por questionar numa carta enviada ao Tribunal Superior de Bombaim a constitucionalidade das decisões jurídicas tomadas no estado de Goa à luz de uma lei que não estava formalmente traduzida numa língua oficial da Índia.

O problema, no entanto, apenas foi parcialmente resolvido. Muitos decretos e legislação portuguesa relacionada com o código civil português, como “o código de registo da propriedade de 1952 e 1959, a lei do divórcio de 1910, a concordata de 1940, a lei de proteção das crianças de 1910 e até o código comercial português não foram traduzidos”, descreve em declarações à Lusa pelo telefone Aurobindo Xavier, presidente da Sociedade Lusófona de Goa.

“Todas estas leis continuam a ser aplicadas em Goa, sem terem sido traduzidas e publicadas no jornal oficial, e, por isso, sem um suporte legal”, afirma.

“Só vivendo aqui em Goa, uma pessoa pode compreender o que se passa com as propriedades e as casas. É um horror! Há pessoas que se matam e matam outras para herdar uma casa, de que ninguém se interessava há 30 anos, mas hoje pode valer um milhão de euros”, diz Aurobindo Xavier.

O Código Civil português de 1867 – conhecido entre os juristas portugueses como o “Código de Seabra”, assinado por António Luís de Seabra e Sousa, autor da peça jurídica que reuniu e atualizou pela primeira vez em Portugal, e por inspiração francesa, toda a legislação civil existente no reino na altura – mantém-se em vigor em Goa até hoje.

Por outro lado, não só esta lei do século 19 está ainda bem viva em Goa, como nunca existiu naquele estado indiano outra versão oficial que não a original, em língua portuguesa, “ao longo de todos estes anos, mesmo depois do Governo da Índia ter assumido o poder no território” em 1961, diz Saba V.M. da Silva, professor principal no Govind Ramnath Kare College of Law e membro do Gabinete de Estudos Jurídicos da Universidade de Goa.

Isto apenas aconteceu, segundo o mesmo especialista, porque “houve vários advogados importantes que fizeram traduções de acordo com as suas conveniências e nunca ninguém sentiu que precisava verdadeiramente de ler o código na língua original. Portanto, não havia problemas. Até que foi divulgada essa carta enviada ao tribunal superior”, explica Saba da Silva.

A “carta”, escrita por um antigo professor e reitor da faculdade de direito de Goa, Mariano Pinheiro, enviada ao Tribunal Superior de Bombaim e reproduzida num artigo de opinião publicado por um diário goês em março de 2017, questionou a constitucionalidade da aplicação de legislação que não estava traduzida para o inglês e deu origem a uma tradução publicada no jornal oficial – Official Gazette of the Government of Goa – em meados de outubro de 2018.

“Havia muitas traduções não oficiais, mas não existia uma tradução oficial. Agora temos esta tradução, mas ainda não temos tudo em inglês. Uma parte do código civil em português ainda se mantém em vigor”, diz Saba da Silva, sublinhando o problema de que fala Aurobindo Xavier.

Outra das dificuldades apontadas pelo presidente da Sociedade Lusófona de Goa diz respeito à própria tradução agora oficializada, que deixa campo a alguma contestação. “A tradução que foi agora publicada na Gazeta oficial não é uma tradução exata”, diz Aurobindo Xavier.

Nem pode ser, na opinião deste responsável goês, “porque a legislação indiana, e a legislação inglesa – que é a mãe da legislação indiana -, não têm correspondência de conceitos com o código civil português. Então, a tradução foi feita na medida do possível, aproximadamente, para refletir aquilo que o código civil português diz, mas em língua inglesa”, acrescenta.

E aí, ainda na perspetiva de Aurobindo Xavier, “também há uma conflitualidade que resulta da interpretação dos conceitos do código civil português em língua inglesa”.

Entre as traduções de que se serviram os juristas goeses até à publicação da tradução oficial em outubro, constava uma elaborada pelo Instituto de Cooperação Jurídica na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), que em 2008 tomou a iniciativa de a promover.

“Fizemos uma edição bilingue, que foi publicada pela Associação Académica da nossa faculdade, com comentários de professores da nossa faculdade das disposições do código sobre o direito da família e das sucessões, que vigoravam ao tempo em Goa”, explicou à Lusa Dário Moura Vicente, presidente daquele instituto.

A iniciativa é uma entre muitas expressões da relação fértil de cooperação entre a FDUL e Goa, que compreende a realização todos os anos de um curso de pós-graduação, ministrado por professores portugueses, que versa, entre outras matérias, aquelas que são tratadas no código.

“Todos os anos, professores da nossa faculdade deslocam-se a Goa a fim de lecionarem essas matérias”, diz Moura Vicente, assim como a FDUL também convida com regularidade professores goeses a participarem em Lisboa em vários eventos.

“Temos procurado, desta forma, retomar um certo intercâmbio cultural entre Portugal e Goa no campo do direito, que é um domínio que nos liga a esse território. Para além de haver uma história comum de mais de 450 anos e de uma língua que ainda é falada por parte da população goesa, há também um direito português, que se mantém em vigor, e que temos procurado ajudar a interpretar e a aplicar, por esta via da cooperação universitária”, acrescenta Dário Moura Vicente.

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