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Gilberto Gawronski: o ato da representação como generosidade

No monólogo Ato de Comunhão, o ator gaúcho, radicado no Rio de Janeiro há mais de três décadas, levou à cena um caso verídico de canibalismo, praticado por Armin Meiwes, na Alemanha, em 2001, com consentimento da vítima, o engenheiro Bernd Jürgen. É sobre este imenso desafio e seu extenso currículo no teatro que ele nos fala nesta entrevista.

O artista parece estar sempre buscando a forma dentro da significação e vice-versa, pois só assim consegue dar sentido à sua obra. É esta combinação o objeto central na arte de representar?

Me parece que isso é o que nos norteia. Achar signos que ajudem a elucidar nosso pensamento artístico, expressões estéticas que traduzam o que nos impulsiona. Elementos que unam nossa sensibilidade com a do espectador, para a melhor tradução do tema proposto.

Você diria que transpôs fronteiras para viver Armin Meiwes, em Ato de Comunhão? Houve alguma espécie de recusa pelo trabalho, em seu primeiro contato com o texto? Como você chegou até ele?

O texto me foi indicado pelo crítico uruguaio Jorge Árias, quando viu sua montagem em Montevidéu. Conhecedor do meu trabalho, através das montagens de Dama da Noite, Na Solidão dos Campos de Algodão e Medida por Medida, e assim ciente das escolhas temáticas que mais me agradam – sexualidade, afetividades do tempo contemporâneo – me sugeriu ser o “embaixador” de Lautaro Vilo no Brasil. Fiquei muito impressionado com a qualidade do texto do autor argentino, que escreveu esse monólogo baseado em um fato real, acontecido na Alemanha, em 2001, e que traça em versos a trajetória deste fato. No primeiro momento, hesitei em montá-lo, mas percebendo o conteúdo lúdico que ele consegue imprimir num fato tão aterrador e as múltiplas possibilidades de leitura que ele propõe, comecei a pesquisar os recursos estéticos que ajudariam na encenação.

Qual a dificuldade encontrada por você no processo de composição de Armin? Afinal, o tema abordado é complexo, polêmico e assustador. A preparação do texto chegou a mexer emocionalmente com você?

Todo trabalho acarreta suas dificuldades próprias e elas são um estímulo para o processo criativo. O tema proposto foi tratado com técnica para que os aspectos assustadores se mantivessem na obra.

Armin e Jürgen se conhecem pela internet, um meio moderno de relações sociais em relação ao qual há prós e contras. Qual sua opinião sobre os vínculos virtuais entre as pessoas, cada vez mais comuns em nosso tempo?

Acho que a ferramenta de encontros que esse novo meio nos oferece ainda é muito novo e que não temos um código de ética e comportamento ainda estabelecido para tal, portanto é preciso tomar muito cuidado com isso. O binômio real e virtual é algo a ser discutido e entendido mais profundamente. É um pouco essa a proposta de Ato de Comunhão.

Acredita que ao representar o ator deva estabelecer uma cumplicidade com o personagem, mesmo que se trate de um personagem real que chegou ao limite da barbárie a que um ser humano pode chegar?

O ato da representação é sempre, a meu ver, um ato de generosidade. Não cabe ao intérprete julgar o personagem que ele apresenta. O teatro não tem que vir arraigado de normas jurídicas ou religiosas, ele alimenta estes códigos. No aspecto trágico do texto, não existem maniqueísmos, o certo e o errado são sempre relativos.

Freud diz: “O canibal tem afeição devoradora por seus inimigos e só devora as pessoas de quem gosta”. Mesmo embasado nesta afirmação, não nos é possível desassociar o ato de Armin da barbárie.

A primeira leitura do ato de Armin é a bárbarie, mas, como você mesmo cita Freud, a questão é bem mais complexa. E o ato de levar esse ato assustador para a cena procura trazer a discussão para o cerne da questão. O teatro foi, é e sempre será um palanque para as contradições.

Em 2009, você produziu, dirigiu e atuou em Medida por Medida, de Shakespeare. Como administrar tantas e diferentes funções?

Me cerco de artistas em quem confio e que são interlocutores do processo criativo, por isso as múltiplas funções são relativas. Recebo e dependo das sugestões dos meus colegas. As funções são meramente para melhor conduzir o trabalho, nunca um exercício de isolamento que impeça o diálogo.

O que dizer do cenário atual do teatro brasileiro? As leis de incentivo à cultura impulsionam e facilitam o desenvolvimento da arte no Brasil ou ainda são por demais burocráticas, fazendo com que se perca muito tempo para se conseguir um patrocínio?

Existe um componente mais confortável para encenar quando somos subvencionados, mas a engrenagem burocrática pode limitar a liberdade artística. O público, quando vai assistir uma obra de arte, quer tomar carona no voo libertário que aquela obra impulsiona. Muitas vezes, para atender às exigências burocráticas, perdemos esse aspecto salutar da produção artística. É preciso melhor distinguir o produto da indústria do entretenimento do produto de arte.

Muitos atores costumam dizer que a catarse é uma experiência fortemente vivida quando estão em cena. Com você é assim também?

Certamente é muito forte, mas ela tem que ser domada, usada com técnica para ser atingida. E que possamos chegar nela não pelo acaso, mas como resultado de um processo elaborado e pré-estabelecido. Acredito em processos educativos que aprimoram o trabalho do ator e que possam ser usados para a composição de sua criação de maneira equilibrada.

Sobre oa autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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