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Francisco Sá Carneiro, 40 anos depois

Muita gente estará ao corrente ou terá mesmo lido recentemente no Expresso (em 22 de novembro na edição digital) a entrevista com Francisco Sá Carneiro – não o antigo primeiro‑ministro, de desaparição prematura e trágica em Camarate a 4 de dezembro de 1980, mas o seu filho primogénito, também ele Francisco.

A entrevista é uma peça de enorme qualidade, ou não fosse a entrevistadora a jornalista Maria João Avillez (MJA), decana da profissão em Portugal. Que para mais também no passado tinha entrevistado (e biografado) o Francisco pai, tendo até recebido em 1981 o prémio EFE (a partir de 1983 designado por Prémio Rei de Espanha) para a Melhor Reportagem do Ano, publicada no Expresso nesse ano, precisamente com uma peça intitulada Sá Carneiro – o último retrato.

Os temas em torno da revolução de 25 de Abril de 1974 continuam a suscitar o meu grande interesse. A revolução foi um despertar abrupto e avassalador da consciência política, para mim como para toda uma geração, de facto para todo um país. No liceu politicamente inflamado que frequentei entre 1974 e 1978, as discussões entre alunos nos intervalos entre aulas eram acesas e quase invariavelmente sobre política – não sobre futebol ou outros temas, como será habitual noutras épocas.

Sá Carneiro (pai), embora com um papel ligeiramente menos central do que alguém como Mário Soares, foi uma das grandes personagens desses tempos. Anos intensos, ardentes e conturbados, tempos de ânimos exaltados. E foi também ele o líder de quem na altura me sentia mais próximo. As circunstâncias trágicas da sua morte, na qual foi acompanhado pela mulher que amava, Snu Abecassis, em nome da qual desafiou a moral hipócrita e caduca daquela época, reforçaram e perenizaram o interesse sobre a sua vida política e, sobretudo, pessoal.

E é em torno do pessoal e do íntimo que se vai desdobrando a cativante entrevista de Maria João Avillez a Francisco Sá Carneiro filho – o Francisco pequeno, como alguns o tratavam no círculo familiar de Francisco pai e Snu.  O diálogo entre entrevistadora e entrevistado, conduzido com delicadeza mas firmeza por MJA, vai-nos levando numa viagem familiar desde os tempos dos últimos anos da ditadura até à revolução e ao percurso fulgurante e brutalmente interrompido de Francisco pai. O mais singular é contudo o testemunho sobre a vida depois de 1980, período sobre o qual Francisco filho muito pouco tinha partilhado antes em público.

Também para mim, a morte do Francisco pai representou a perda de uma figura paternal. Talvez por essa afinidade fiquei marcado por muitos anos, desde as semanas e meses que se seguiram a Camarate, pela figura profundamente triste do Francisco filho, nas poucas fotografias vindas a público e num avistamento pessoal fortuito em Lisboa, pouco depois da morte do Francisco primeiro-ministro. Fiquei marcado pela imagem de um filho que na realidade tinha sido duplamente golpeado, por aquela morte do pai e pelo corte de relações mantido pela mãe mesmo depois dessa morte, uma insensibilidade incompreensível para quem observa do exterior.

Dados estes antecedentes, a parte da entrevista que cobre o período desde 1980 funcionou um pouco como um contrapeso a essa tristeza da minha memória, como tinha aliás funcionado a minha leitura recente do capítulo final (Rebecca e Francisco, Um Ano e Meio na Rua D. João V) do livro de Cândida Pinto, Snu e a Vida Privada com Sá Carneiro (Publicações D. Quixote, 2011).

Independentemente das circunstâncias específicas das pessoas envolvidas neste caso, há algo reconfortante num testemunho como o de Francisco filho, que mostra como é possível, sem renegar o trauma do passado, recompor-se e reconstruir uma vida em que cabe uma grande dose de felicidade. É esta a principal satisfação que retiro da leitura desta entrevista.

Mas o motivo que me espicaçou e me fez escrever este texto reside em outra parte da entrevista, perto do seu início. A dada altura, Francisco é questionado sobre se os portugueses se lembram do seu pai, o líder e primeiro-ministro. Em resposta, Francisco conta uma história afetuosa de deliciosa ironia, e conclui com o seguinte comentário: “É isto: para quem tiver menos de 60, 70 anos, o meu pai é o nome de um aeroporto”.

Sorriso desconcertado, levantar de sobrancelhas… e pausa na leitura da entrevista. A SÉRIO?!

É assim, já ao fim de 40 anos? Mesmo para alguém cujo cortejo fúnebre por Lisboa foi engrossando até juntar (disse-se na altura) algo como 200 000 pessoas? Como aparentemente não tinha havido antes na História de Portugal? Por quem parte do país ficou paralisado em choque no dia seguinte à morte? Com universidades em que não houve aulas? Com um ambiente zombie nas ruas de Lisboa, que nunca esquecerei?

Apesar do abanão, penso que a resposta do Francisco filho tem de facto uma ponta de verdade, e mais do que pequena. Senão vejamos, abstraindo deste caso. Quantas ruas há das quais não conhecemos a personagem que lhes dá nome, muito menos a sua história? Quase todas… E de quantos primeiros-ministros ou presidentes de há quatro décadas se lembra a generalidade da população? Quase nenhuns…

O que o Francisco filho ilustra com a sua resposta em piscar-de-olho vai muito além de si próprio e do seu pai: é a universal verdade do caráter efémero do que nos rodeia, incluindo as memórias, mesmo as memórias de gente que marcou profundamente a sua época. É um cliché dizê-lo, é claro, mas é verdade.

E o que é que, pequeninos nós todos, podemos fazer para não perder por completo as memórias que nos são queridas e vão desaparecendo com o tempo, sobretudo algumas memórias familiares ou de amizade de todos nós? É uma das grandes perguntas da vida, não há resposta cabal e se houvesse não caberia aqui. Apenas tenho para mim, pequenininho que sou como todos nós, quão importante é essa coisa de recordar e celebrar com os que nos são próximos. Não nos esqueçamos de recordar e celebrar o que nos aquece o íntimo: ou com a família ou com os amigos, os próximos e os pelo mundo fora.

Gabriel Martins

3 de dezembro de 2020

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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