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Epifania ou As Portas da Percepção

Nasci no princípio do século

eu sei que é assim

que começará um dos meus futuros romances

O Velho será outro dos livros

que tenho por escrever

hoje acordei e soube-o assim

sem estar ainda bem acordado

viajei por mim, como outros viajam

pelo seu quarto e outros ainda

desfazendo dos primeiros

viajam pela sua terra

eu vi-me todo

e eu vi-me antes de mim

e eu vi-me depois de mim

e eu percebi o meu lugar

no mundo e o meu lugar

no caos no cosmos e no tempo

não foi uma revelação religiosa

não foi um êxtase eufórico-orgásmico

no fim chorei, como um miúdo,

de alegria e de tristeza

porque percebi que aquilo que eu digo

todos os dias, quase como um automatismo

à mulher que eu amo e ao meu filho

nunca o disse

nem à minha mãe

nem ao meu pai.

 

A ante-câmara do apocalipse

foi essa névoa indistinta

chuva baça e translúcida

que não vemos mas vislumbramos

porque todos sabemos como é

e com um nome ainda por inventar

o nano-instante derradeiro

que nos separa do sonho e do acordar

essa porta onírica do tangível

esse cortinado sonial atrás do qual

já ouvimos os barulhos lá fora

mas os vemos deste lado de dentro do sonho

e sabemos bem que ainda estamos a dormir.

 

Um velho à procura de papéis, que uns miúdos lhe tinham roubado numa espécie de gare velha, que parecia uma estação desafectada. E quando os miúdos repararam que os papéis não tinham valor nenhum, porque eram só desenhos, rabiscos, frases escritas ao acaso, coisas de velho maluco, devolveram-lhe os papéis. O homem ajoelhou-se no chão para os apanhar antes que o chão os devorasse e chorou. Era o seu romance inacabado.

Podem pensar: mas isto é um poema ou é o quê?

Raios partam o autor prolixo! Pró lixo!

O que é ficará por baptizar.

Sim, este texto é exactamente como deve ser.

Eu também sei quem sou.

Mesmo assim.

Agora já não choro.

 

O meu flho acordou e eu tenho que ir

viver a minha vida e cumprir o meu destino,

eu, sempre tão avesso a que me ditem e desditem

fados.

 

6:55

– Papá, hoje é sábado?

– É!

– Então podemos acordar à hora que quisermos?

– (risos) Sim, podemos.

– Então quero acordar agora!

– (risos) Já estás acordado.

 

O meu filho é mais sábio do que eu,

somos nós que decidimos quando acordamos.

 

José Luís Correia

19092020

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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