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Eloar Guazzelli: os quadrinhos como arte autônoma e sofisticada

Gaúcho de Vacaria, Eloar Guazzelli é um dos mais destacados autores de histórias em quadrinhos de nosso país e recebeu alguns dos mais importantes prêmios de sua área, como o Yomiuri International Cartoon Contest e o HQ Mix. É também diretor de filmes de animação, ganhador, em 2013, do prêmio de Melhor Diretor de Arte, no Festival de Cinema de Gramado, por Até que a Sbórnia nos Separe. Professor dos cursos de pós-graduação do Istituto Europeo de Design, tem mais de duas dezenas de livros publicados no Brasil e no exterior.

Pode nos contar um pouco sobre sua história e a de sua família, que, no último século, teve papel de relevância na história do Rio Grande do Sul?

Venho de uma família que sempre motivou o interesse pelas artes, sem fazer distinção. A biblioteca era bem grande e desde cedo me vi num ambiente muito ocupado por livros. Meu pai foi advogado de presos políticos. Esta foi, com certeza, sua maior obra e por conta disso cresci num contexto humanista que valorizava muito o conhecimento. Minha mãe também era apaixonada por musica e literatura, de forma que desde muito cedo entrei em contato com várias expressões artísticas. E por conta da convivência com meus irmãos mais velhos eu tive contato com a produção de quadrinhos. Nos anos 80, comecei a buscar um lugar pro meu desenho. Entrei na faculdade de Belas Artes e também comecei a trabalhar com desenhos animados. Surgiu então a possibilidade de trocar meu papel de leitor pelo de autor, numa linguagem em escala industrial e também serviu de laboratório para elaborar minhas primeiras histórias.

Quando a descoberta do desenho e dos quadrinhos?

Apesar de já cooperar com publicações de São Paulo, Buenos Aires  e Espanha, minha produção, dos anos 1990 até 2005, foi bastante irregular, e minha vida profissional nesse período ficou mais focada na direção de arte para cinema de animação. Porém, o nascimento de minha filha Flora, em 2004, mudou radicalmente essa situação. Passei a sentir uma necessidade de realizar um trabalho autoral, que logo se traduziu em dois álbuns: O Relógio Insano e O Primeiro Dia. Começaram a surgir oportunidades de fazer adaptações de textos literários para quadrinhos: O Pagador de Promessas, A Escrava Isaura, Demônios, etc.. Uma atividade que se desenvolveu em paralelo com a atividade de direção de arte para cinema de animação. E também a uma maior inserção no mercado editorial voltado para o publico infanto-juvenil. Portanto, creio que transitar entre linguagens (realçada pela formação acadêmica em artes plásticas) sempre esteve presente de forma natural nas minhas atividades, sendo que a hegemonia de cada atividade se dá por períodos, sem ocorrer nenhum momento em que eu abandone em definitivo alguma dessas expressões. Até porque, elas se alimentam, interpenetram o tempo todo. E giram sempre em torno do prazer de desenhar.

Como vê os cursos acadêmicos na área do desenho oferecidos no Brasil?

Não tenho um conhecimento muito profundo. Tudo que posso falar é a partir da minha própria experiência como professor na pós-graduação do IED (Istituto Europeu de Design) e em oficinas no Sesc, no Sesi, festivais e congressos. Mas o que percebo claramente é um crescimento do interesse por uma formação mais institucional, um dado positivo dentro de um contexto até pouco tempo dominado por um autodidatismo. Acho positivo aprender por conta própria, até porque isto indicava não ficar passivo diante da falta de cursos e o autodidata é um aluno que tem alto grau de entrega, não pode se dar ao luxo de enganar a família, gazear aulas. Tudo gira em torno do seu próprio interesse. Em geral, tem um perfil aguerrido. Mas esse sistema tem limites, temos de ultrapassar esse estagio e por isso mesmo, vejo o crescimento de cursos nesta área como positivo. A única ressalva é o medo que tenho do uso de formulas de desenho, aquele esquema de construção automática, copista mesmo.

Apesar dos avanços nas últimas duas décadas, ainda há muito a percorrer para a profissionalização de nossos quadrinistas e ilustradores?

Acho que sempre houve uma variedade de quadrinhos no Brasil, mas para públicos restritos, em geral com um caráter de produção independente. O que realmente mudou é que estamos construindo uma produção em escala industrial de um tipo de quadrinho que antes estava restrito às produções em escala menor. Hoje em dia, por conta de inovações técnicas, como o advento do computador pessoal e da rede mundial de computadores, estamos no limiar de um grande salto qualitativo, onde deixaremos de ser um país formador de profissionais qualificados, para nos apresentarmos como um centro de produção de conteúdo. Ou seja, estamos no caminho, difícil e cheio de obstáculos, de construir uma estrutura de produção em escala industrial. Panorama no qual as adaptações e conteúdos paradidáticos irão desempenhar importante papel por conta das compras em larga escala para uso na rede escolar.

Por que ainda poucos nomes dos quadrinhos nacionais têm espaço na grande mídia, enquanto alguns poucos ocupam verdadeiro latifúndio?

Vivemos um período onde, infelizmente, a desigualdade se expande, recuperando terreno em áreas onde o século XX tinha conseguido, a duras penas, estabelecer parâmetros mais justos. Isto se reflete igualmente no terreno das noticias, que no fundo são mercadoria. Então,esses critérios passam a dominar a cena. E muitas vezes o espetáculo se estabelece como critério e valor maior. Acho isso perigoso e empobrecedor da cena, mas enquanto vivermos nesta era espetacularizada, a tendência é que esse tipo de atitude prevaleça. Por outro lado, vivemos uma época com um numero ímpar de autores de primeira linha, talvez como nunca. E dessa forma é impossível ignorá-los como fenômeno, o quadro que é ruim encontra uma resistência natural.

Em recente palestra na Universidade de São Paulo, você estabeleceu um interessante diálogo entre quadrinhos e literatura. Pode nos falar um pouco a respeito disso?

A literatura como um todo me agrada. Venho de uma família que ama os livros e cresci no meio de bibliotecas.Mas, por isso mesmo, sou meio eclético e funciono por fases. Mas tenho lá minhas preferências: os russos (Dostoievski, pairando sobre tudo, mas o páreo é duro…, Tolstoi, Gogol, Babel). Os clássicos franceses e também latinoamericanos, especialmente Borges, Garcia Marquez, Llosa, Cortázar, Horacio Quiroga (um uruguaio muito louco que teve algumas adaptações antológicas pra quadrinhos, como A galinha degolada, por Enrique Breccia). Os americanos (Faulkner, Chandler). Mas sempre tem espaço pra novas descobertas. Ando muito interessado em literatura Africana (Agualusa).Dia desses, retomei a obra do Saint-Exupéry ( parece piada, mas um cara maravilhoso que ficou estigmatizado por conta de uma tola associação entre sua obra e o discurso vazio de candidatas em concurso de beleza, um aristocrata que entendeu a força da modernidade no amor pela aviação, que ele ajudou a construer). Agora estou transitando por biografias, este ano estou fazendo uma degustação bem eclética: Chaplin, Pancho l, Walt Disney, Lincoln e James Joyce. Uma coisa meio louca, mas que me agrada, porque, às vezes, encontro argumentos interessantes em detalhes das narrativas, brechas onde aparecem até estranhos traços de união entre personagens muito distintos. Ler pra mim é uma compulsão, um vicio que faz bem pra saúde.

E a experiência em levar para os quadrinhos muitos de nossos autores clássicos?

Creio que toda adaptação, incluindo as cinematográficas e televisivas, ampliam os horizontes do público e dada a enorme influência do audiovisual na sociedade contemporânea, com certeza, despertarão, no mínimo, uma curiosidade para determinadas obras e autores. Até porque, são abordagens diferentes. A leitura de uma adaptação em determinada  linguagem não esgota as possibilidades do original, se bem feita, é mais uma tradução. Acho que sempre houve uma variedade de quadrinhos no Brasil, mas para públicos restritos, em geral com um caráter de produção independente. O que realmente mudou é que a partir das compras por Planos de Governo, a partir de 2007, estamos construindo uma produção em escala industrial de um tipo de quadrinho que antes estava restrito àquelas produções em escala menor. Temos um panorama em que as adaptações e conteúdos paradidáticos irão desempenhar importante papel, justamente por conta das compras em larga escala para uso na rede escolar. E nesse contexto ampliam-se as possibilidades editoriais. Eu vejo com relativo otimismo a cena brasileira, com inúmeros autores desenvolvendo diversas poéticas e narrativas, apresentando um contexto bastante rico. Mas como uma atividade industrial, todo esse movimento depende muito da conjuntura econômica e também é bastante influenciado pelas novas plataformas de exibição. Por isso, a experiência de articular o álbum com um projeto audiovisual. Mas para ser sincere, vejo algo tão ou mais importante no fato da simples leitura de quadrinhos de qualidade. Eu ficaria bastante satisfeito se o público jovem despertasse para outras formas de expressão em quadrinhos, afinal essa é uma das linguagens mais contundentes do século XX. E muito mais profunda do que parece.  Isso porque os quadrinhos são uma espécie de gêmeo do cinema, infelizmente um par meio maldito, vitima, por muito tempo, de forte preconceito, sendo considerado uma arte menor. Situação que efetivamente começou a ser debelada, a partir de forte movimento entre intelectuais e pesquisadores no pós-guerra. Então, os quadrinhos são vistos como uma arte autônoma e acima de tudo tão rica e sofisticada quanto seus pares. E deixam de ser vistos como se fossem apenas um produto comercial para crianças e adolescentes. Portanto, vejo possibilidades muito positivas nesse processo de adaptações.

Ter sido premiado, em diversas ocasiões, trouxe algum impulso?

Ninguém em sã consciência pode renegar prêmios, além de muitos terem valor direto, sempre servem para nos colocar em evidência e são uma espécie de aval para o trabalho. No entanto, Kafka, Pessoa, Van Gogh e outros gigantes, até onde sei, não foram premiados em vida. E tem o maior dos louros ,a imortalidade, pois são clássicos. Portanto, nessa era das promoções sem limites, das vaidades exacerbadas, há que se ter uma certa cautela. Ganhei vários prêmios, alguns deles internacionais e em diferentes áreas de atuação, mas o maior prêmio para mim sempre foi o respeito de colegas que são referência.

O mercado restringe a liberdade de criação?

Eu vejo o capitalismo nos seus momentos iniciais como a força mais criativa que existe. O problema está que, ao longo do seu desenvolvimento, há uma tendência de acomodação a fórmulas, que termina por condicionar e sufocar os processos criativos, submetendo os gostos a um padrão mais fácil de aceitação. E aí reside o perigo do sistema entrar numa espiral de fórmulas batidas e condicionadas a tantos interesses financeiros, que, no final, não sobra arte nenhuma. Esse processo me parece fora de controle em muitas esferas. Minha esperança está no crescimento de cenas independentes, que, por conta do esgotamento de velhas fórmulas, adquirem uma força cada vez maior.

Novos projetos?

Sempre. Tenho trabalhado muito nos últimos anos. Desde 2007, só em adaptações. Já fiz O Pagador de Promessas, A Escrava Isaura, Demônios , 1924 São Paulo em Guerra, Eu, Fernando Pessoa, Kapput, Grande Sertão:Veredas e Vidas Secas. Sem contar os sete volumes da Coleção Um-Pé-de-Quê, a participação nos álbuns coletivos Domínio Público Nacional e Domínio Publico Internacional, dois livros autorais, O Primeiro Dia e O Relógio Insano, além dos inéditos Mulungu, sobre argumento de Marcelino Freire, e O Bem Amado. No verão deste ano realizei um quadrinho de bolso autobiográfico, chamado Apocalipse Nau, que sairá pela Editora Nos, muito em breve. Nesse embalo estou fazendo a biografia romanceada de Emanuele Landi, o ítalo-brasileiro que, entre outras ,criou as Bienais Internacionais de Quadrinhos do Rio de Janeiro e as sete primeiras Edições do FIQ (Festival Internacional de HQ de Belo Horizonte ). E mais um álbum de quadrinhos, ambientado nas missões guaranis, chamado A Batalha, com roteiro de Fernanda Verissimo. E se não perder o fôlego, para o próximo ano, um álbum autobiográfico, chamado Porto Alegre. A carroça não para…

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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