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É só mais um tijolo na parede

© Pink Floyd

Lembro-me da escola primária, do meu professor que tinha a alcunha do segundo mês do ano, e na minha memória uma voz que não tem sequer traços de fisionomia, ou de lugar, a dizer, “olha lá rapaz, ouvi dizer que na escola quando vocês aprendem os meses do ano, a seguir a Janeiro são obrigados a dizer, “mês ao pé, Março, Abril… e por aí adiante? 

 A verdade é que essa voz só serviu para me confundir pois não me lembro se de facto, a seguir a Janeiro dizíamos, mês ao pé, muito embora, ao longo dos anos, fui aprendendo muito acerca da maldade de algumas pessoas, e também da sua cobardia, e tendo isso em conta, muito provavelmente, mesmo com uma alcunha que o próprio professor não gostaria, o mais certo é que quando tínhamos de dizer os meses do ano, simplesmente a seguir a Janeiro vinha o Fevereiro, e por aí adiante.

Mas também é certo afirmar que nunca lhe conheci outro nome, e duvido muito que houvesse muita gente que o conhecesse pelo seu próprio nome pois todos se referiam a ele pela sua alcunha apenas.

No entanto, na memória surgem lembranças de um fato preto, um chapéu também preto e de abas largas, que lhe dava um ar sinistro e ao mesmo tempo enigmático.  E não fosse tão exagerada a afirmação, quase que juraria também, que nunca o ouvira falar sequer, pois, parecia-me na altura, que de cada vez que este homem abria a boca, era o seu tom carrancudo, aquela robustez de velho mal-encarado, que nos fazia ficar tão tolhidos de medo, que a maior parte das vezes o assimilávamos a dias cinzentos e carregados de trovoada. 

Salvo o exagero da expressão, este homem que interferia pela primeira vez na minha educação escolar, que semeava aquilo que viriam a ser as minhas raízes culturais para o futuro, aterrorizava-me com o seu método brutal, tornando os dias escolares, e aquilo que era a primeira experiência na escola, num autêntico pesadelo. 

Tenho ainda uma vaga ideia das primeiras lições do abecedário, das vogais e da tabuada do 1 e do 2, mas todas estas lições estavam sempre associadas a manhãs frias de inverno, num tempo em que o ano tinha ainda as quatro estacões bem definidas, a reguadas nas mãos geladas, seis em cada mão, como que se à dúzia fossem mais baratas. 

Mas a recordação que mais clara me aparece nos meus pensamentos, é aquela que sempre carreguei pela vida fora, e que, quando me lembro dos meus primeiros tempos de escola, lembro com nitidez, quase tintim por tintim, todos os detalhes a ela associados. 

Ficou-me gravado a ferro e fogo na memória, pela mais brutal das razões.

Fui punido de maneira severa porque cometi um crime, hediondo, inaceitável.

Bem que nesse dia a minha mãe me avisou que eu iria chegar atrasado à escola, mas de cada vez que atentava por um braço fora dos cobertores que me mantinham tão aconchegado, tão quentinho, parecia que o frio se apoderava de mim, agarrando-me no braço quase com brutalidade, para que depois se esgueirasse para dentro dos cobertores percorrendo-me o corpo todo.

– Já vou…

Agora que entrava na sala de aula, atrasado, tolhido de frio e de medo pelo atraso, quase não tive tempo para me arrepender de não ter dado ouvidos à minha mãe e às suas insistências para que me levantasse.

Fui punido ainda mal tinha entrado na classe, não por ter chegado tarde, mas porque confundi uma ordem que o professor tinha dado, para que fechasse a porta que eu tinha deixado aberta quando entrei de passo apressado.

– Quem te mandou fechar a porta seu burro?

Não obstante a humilhação de ser insultado poucos segundos após ter entrado na sala, a maneira como ele gritou comigo deixou-me petrificado ali no meio, sem saber se me movia em direção ao meu lugar, se voltava atrás e retificava o meu erro, abrindo a porta novamente, ou se…

– Chega aqui imediatamente.

E eu cheguei. 

Estendi as mãos para levar doze reguadas, seis em cada mão, e como se isso não bastasse, dada a natureza do meu crime, mas talvez mais pelo seu arrojo, ordenou-me que me deitasse no chão, cabeça apoiada no estrado que nos servia de apoio para chegar ao quadro, ali fiquei por mais de meia hora, tempo infinito assim me pareceu, humilhado como um verme, de corpo e face dorida e quase adormecida, a pressentir a crueldade dos risos abafados dos outros fedelhos da classe, enquanto, indiferente ao castigo que impunha, o professor continuava a aula na maior naturalidade, ignorando o sofrimento e a humilhação que me estava a causar. 

Quando terminado o castigo, ordenou-me que me levantasse e fosse para o meu lugar.

Era esta a minha primeira lição do dia. 

Não tirei proveito dela porque também não compreendi nunca qual o sentido, o propósito da lição, e assim que me levantei, de pernas dormentes, das quais tive enormes dificuldades de segurar firmes, de cabeça a andar a roda, como se tivesse acabado de sair da taverna onde estivera a beber até cair, foi quase por intuição que cheguei ao meu lugar e nele me sentei, magoado, não sabendo bem se pelo castigo, pela brutalidade da punição, se pela humilhação que a mesma representava.

O pesadelo com o professor de fato preto, chapéu preto e de abas largas, durou até meados da terceira classe.

Até que, cerca de dez minutos para lá do toque da campainha, a murmuração que pairava na sala de aula, sobre a ausência do senhor professor que tinha o nome do segundo mês do ano, pareceu desfalecer do teto de uma assentada assim que a porta abriu de rompante.

– Tudo para casa até nova ordem, vá, vamos lá, toca a andar.

A emoção e a alegria de ter escapado a mais um dia de tortura era tanta, que nos atropelávamos uns aos outros a tentar sair quase todos ao mesmo tempo por uma porta que nos parecia estreita de mais para a nossa pressa e a nossa excitação. 

Não regressou mais.

A doença era grave e tomou conta de si e dos seus dias.

Valeu-nos o seu infortúnio, cerca de uma semana em casa, coisa que na altura nos parecia quase como uma retribuição do universo, porque Deus com certeza não se daria a esses julgamentos sem que eles fossem feitos na altura e na dimensão certa, pelo sofrimento que havíamos passado sobe o domínio dos seus ensinamentos escolares.

Foi substituído por uma professora.

Se antes estávamos mal servidos, com a vinda desta senhora não ficamos muito melhor. 

Raios parta a sorte. 

António Magalhães 

(Memórias de um adicto) 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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