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É o mercado, estúpidos!

A caótica situação atual num número considerável de aeroportos ocidentais — qual deles o mais catastrófico: nos Estados Unidos, em Londres, Amesterdão, Madrid… Lisboa (vergonhosamente considerado o mais caótico de todos, embora estas classificações pequem amiúde por subjetividade e falta de rigor) — foi para mim, durante algum tempo, um intrigante mistério. A que se deveria esta súbita «epidemia» de desorganização, com voos cancelados em catadupa, filas intermináveis nos controlos de imigração e emigração, exasperantes horas de espera por informações acerca deste ou daquele voo (que, não raro, se ficava finalmente a saber ter sido anulado)? Confesso que cheguei a alvitrar andar nisto a mão de Pútin, com os seus alegados dotes para a pirataria informática, lançando o descontrolo nos sistemas dos aeroportos ocidentais; ou talvez com o insidioso incitamento a greves de pilotos e/ou agentes alfandegários; enfim… 

Mas julgo ter acabado por perceber. 

A pandemia de covid-19 e as medidas de confinamento a que obrigou paralisaram durante quase dois anos a navegação aérea no Ocidente. Com as frotas em terra, acumulando despesas e gerando lucros nulos, as companhias procuraram minimizar o prejuízo mediante o despedimento de uma grande parte do seu pessoal e a substantiva revisão em baixa das tabelas salariais aplicáveis ao quadro remanescente. Note-se que não falo apenas das empresas aéreas. As de operações em terra destacaram-se de modo igualmente negativo neste panorama pouco louvável. O sogro de um amigo meu, funcionário alfandegário no aeroporto de Madrid, fez parte dos 30% despedidos (ou, para evitar linguagem panfletária, «dispensados», um eufemismo mais pudico). E os restantes 70% tiveram um corte de 10% no seu salário. Entretanto, com o alívio das restrições decorrentes da pandemia, a procura de transporte aéreo disparou — os cidadãos estavam ansiosos por voltar aos «bons» tempos de 2019. Por conseguinte, o pessoal que ficou teve de trabalhar mais 30%, com 10% a menos no seu ordenado. Readmitir os trabalhadores «dispensados» era pouco viável: na sua maioria, tendo de fazer pela vida, haviam já procurado empregos alternativos. E admitir novos quadros revelou-se uma solução frutuosa apenas a médio/longo prazo, porquanto não se formam num par de semanas trabalhadores para funções de grande especialização e responsabilidade. É esta escassez de recursos humanos que explica, pelo menos em parte considerável, a presente ineficiência nos aeroportos. 

Poderia isto ter sido evitado? Ignoro a dimensão da evitabilidade, mas é presumível que tudo se revelaria menos grave se o mundo ocidental não tivesse enveredado pelo liberalismo sem peias em matéria de economia, um liberalismo que impõe libertar de condicionantes as forças do mercado, a cujas vicissitudes se abandonou a vida económica. Ora, o liberalismo é desejável no plano do indivíduo: com efeito, o corpo social, a comunidade e, mais particularmente, o Estado (que representa esse corpo social, essa comunidade) não têm o direito de se imiscuir nas opções dos cidadãos, enquanto tais opções se restringirem à esfera individual. Penso, com especial acuidade no momento atual, no direito de cada qual requerer assistência médica para abreviar o momento da sua morte, em situações de grande sofrimento físico e/ou psicológico sem expetativas de recuperação (refiro-me, obviamente, ao suicídio assistido, mas a mesma perspetiva aplica-se, mutatis mutandis, às opções gerais de vida). 

Na economia, o raciocínio é — ou deveria ser — diferente. Sistemas económicos guiados pelo liberalismo, em que o critério praticamente exclusivo é o lucro, insensíveis perante as repercussões na vida das pessoas, arriscam-se a, tarde ou cedo, desembocar na ineficiência. Não estamos no século XVIII, quando Turgot, porta-voz de uma burguesia francesa em acelerada ascenção, proclamava  Laissez faire, laissez passer («Deixai fazer, deixai passar»), preconizando que as autoridades de regulamentação económica se coibissem de intervir no mercado. 

A iniciativa privada tem um papel insubstituível (os sistemas económicos nela baseados venceram, pelas realizações, aqueles que reservavam ao Estado o papel predominante, senão exclusivo — obsoletos, ineficazes, autoritários, ditatoriais, obliteradores do empreendedorismo), mas deve ser matizada por preocupações de índole social. O papel de mitigação e disciplina compete ao Estado, interveniente na medida do necessário. E aí estaremos a rejeitar o sistema liberal, que tem os interesses do mercado como árbitro primordial. Aí, entraremos numa verdadeira social-democracia. 

Jorge Madeira Mendes

NOTA: 

O título desta crónica glosei-o de uma célebre frase proferida por James Carville em 1992, durante a campanha de Bill Clinton para as eleições presidenciais norte-americanas: It’s the economy, stupid! («É a economia, estúpidos!»). 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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