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Criar filhos é um trabalho que deve ser reconhecido e remunerado

No dia 25 de maio de 2019, uma cidadã luxemburguesa, Sandy Flesch, apresentou um pedido de petição pública ao Parlamento luxemburguês, que propõe que as mães e pais que abdicam de uma carreira profissional para ficar em casa e cuidar dos filhos possam vir a ter direito a um subsídio ou a um abono.

Recorde-se que desde 2014 o Governo luxemburguês dá a possibilidade a cada cidadão, com 15 anos ou mais, de propor uma reivindicação a discutir no Parlamento. O assunto, que deve ser de interesse público, é proposto em forma de petição pública a introduzir no portal internet do Parlamento. A comissão das petições e a conferência dos presidentes analisam o conteúdo da petição e recusam-na ou consideraram-na admissível. Se for aceite, a petição fica durante 42 dias aberta ao público. Nesse espaço de tempo tem de recolher 4.500 assinaturas e só nessa condição será discutida na Câmara dos Deputados, apresentada pelo peticionário e na presença do ministro da tutela.

Assim, a petição de Sandy Flesch, com o número 1298, encontra-se desde o dia 7 de junho disponível em linha no site do Parlamento para leitura, consulta e assinatura até 19 de julho.

Reconhecer o trabalho diário de mães e pais

O texto da petição pede a atribuição de um subsídio ou abono para as mulheres ou para os homens que decidem abdicar de uma carreira (entenda-se que isto inclui fazer uma pausa na carreira e, portanto, na evolução profissional!) para cuidarem dos filhos em casa, em vez de estes no horário extra-escolar irem para creches ou assistentes parentais (amas).

A peticionária explica que quer deste modo favorecer que os filhos passem a maior parte do dia com os pais e não com estranhos, seja pessoal das creches ou amas, sem desmérito ou desprimor do trabalho destes, entenda-se. A petição pede que a verba que o Estado paga às creches e às amas, através dos cheques-serviço, continue na sua forma atual, mas que seja alargada na sua modalidade, e seja possível ser paga à mãe ou ao pai que ficam em casa com os filhos. O que não muda nada, apenas para a criança, que tem assim a possibilidade e a felicidade (valor menosprezado por muita gente!) de estar mais tempo com um dos seus progenitores.

A petição aponta e bem, a meu ver, que “as tarefas diárias feitas pelas mulheres e pelos homens que ficam em casa a cuidar dos filhos são ignoradas pela legislação atual, mas essas mesmas tarefas são reconhecidas e remuneradas se forem executadas por amas ou pessoal das creches”.

Um direito para todos

À primeira vista, esta é uma petição que deveria merecer os favores de todos os cidadãos, sobretudo dos que têm filhos ou pensam vir a ter, e sabem que isso implica abdicar, temporária ou mais prolongadamente, de forma parcial ou total, da carreira para qual estudarem e/ou trabalharam arduamente durante anos.

Mas não, não é a isso a que assisto nas redes sociais, fóruns e páginas dos media onde se discute o assunto. Estou enjoado e triste com os comentários que leio, muitos dos meus próprios compatriotas.

O que a petição pede é algo legítimo e pode servir para lançar o debate sobre se o Governo até poderia introduzir modelos intermédios como, por exemplo, a pessoa trabalhar a tempo parcial, a 50% ou 60%, mas sendo paga com um salário a 100% (por uma questão de sobrevivência!), encarregando-se o Estado de cobrir a diferença junto do patrão. Por exemplo! Sim, o Estado poderia pagar e não seria um favor, seria um investimento no futuro das famílias, das crianças e da sociedade.

É melhor as crianças estarem com uma ama, numa creche, ou com os pais? Nenhum dinheiro paga o tempo que não estamos com os nossos filhos. Dar o dinheiro a uma creche ou à mãe ou ao pai, o que é melhor para a criança? Claro que depois ainda há aqueles que dizem “eu não tenho filhos, porque hei-de ser a ‘vaca leiteira’ que paga isso?”. Mas, são estas crianças mais tarde que vão pagar a reforma destes que hoje reclamam! Que vistas curtas…

Continuo a constatar com tristeza que continua a vigorar em muita gente a ideia malsã do “se eu não tive direito a esta ou aquela ajuda, tu também não terás; se eu sofri na emigração, tu também hás-de sofrer!” Que raio de mentalidade é esta?

Pessoalmente, eu só posso estar com o meu filho de cinco anos cerca de 45 minutos ao acordar, e metade desse tempo ele está ainda a dormir. E depois, mais uma hora ao serão. O resto do tempo estou a trabalhar (8 horas) e pendulando nos transportes públicos (1h45, ida e volta). E ele? Ele está numa creche e numa ama. E embora eu reconheça todo o trabalho de mérito desses profissionais, eu preferia estar com o meu filho, e ele comigo (ou com a mãe, na semana dela). De que me queixo eu? Bem sei que há pais e mães que ainda estão muito menos tempo com os filhos do que eu. Isto é normal? Eu não acho que seja!

Um direito social a mais é um direito para todos. A sociedade só evolui com mais direitos. Dizer que não a um direito porque este ou aquele não merece releva dos mais baixos e reles instintos.
A ser introduzido pode este sistema sofrer abusos? Claro que pode, como qualquer outro direito social. Ataquem então os prevaricadores e não o direito. Se há pessoas que burlam a ADEM (por exemplo, trabalhando a negro e recebendo, ao mesmo tempo, a indemnização de desemprego) vamos cortar essa ajuda para todos os desempregados? Claro que não! Que raio de mentalidade é essa?

Mudam-se os tempos, muda-se a sociedade

“Sempre foi assim, as mães estão apenas a fazer o seu trabalho, porque havemos de mudar?”, vociferam os Velhos do Restelo, agarrados a tradições que só lhes são convenientes a eles.
“Mutatis, mutandis” (mudemos o que tem de ser mudado). Durante milénios eram as mulheres que quase naturalmente preenchiam esse lugar de criar e cuidar dos filhos no lar. Não tinham escolha nem voto na matéria. Era assim e pronto. Mas há, desde a revolução sexual (e social) dos anos 1960, um requestionamento (ou reposicionamento) do núcleo familiar, o que tem levado a uma profunda mudança nos hábitos sociais e no papel tradicional da mulher e do homem, na família e na sociedade. Cada vez mais homens optam por ser eles a ficar em casa a criar os filhos, enquanto a mulher traz o salário. Quando um salário chega, evidentemente!

E é precisamente neste ponto que a petição toma todo o seu sentido. Numa época em que um salário não chega para sustentar uma família e os dois pais têm de trabalhar para assegurar as despesas do lar, quem fica para segundo plano são… as crianças!

Muitas crianças já nem sabem o que é ter uma família, crescem em meios alheios à família, em casas de amas e nas creches onde estão por vezes mais de 12 horas por dia, veem os pais apenas de manhã, ao acordar, e ao serão, novamente à pressa, entre a correria destes da casa para a creche e para o trabalho, e o inverso no fim do dia. Ora, devem ser os pais a dar a educação aos filhos, preconizam pedagogos e educadores. Mas como, se mal os veem?

É de uma tristeza profunda e de uma erosão humana, social e familiar ainda mais trágica este sistema de sociedade que nos inventámos, ou que nos impuseram sem darmos por isso. Ou demos e não quisemos saber?

É aflitivo que haja cada vez menos pais a levar e a ir buscar as crianças à escola, no que era um ritual alegre que deixava ambos felizes. Isto porque hoje os pais têm horários de trabalho com uma amplitude cada vez maior, cada vez mais “flexíveis” (leia-se “caóticos”), em que se incluem as intermináveis horas de deslocação em transporte público ou privado, o que exige que os pais deixem os filhos nas creches às 7h da manhã (ou antes), e seja o pessoal destas que os leva à escola e traz de volta. Os pais recuperam os filhos cada vez mais tarde, às 19 horas, ou, frequentemente, muito depois dessa hora. É normal? Eu não penso que seja!

Porque hoje em dia, no sistema de sociedade que vigora, o que é importante não são as famílias, os homens, as mulheres e as crianças, “é a economia, estúpido!” A **** (incluir um palavrão à escolha) da economia neoliberal que só reconhece alguém quando este trabalha! Não, desculpem, quando este tem um emprego remunerado! Repare-se na nuance, que não é de somenos importância: quem não tem um emprego, não trabalha, e todos sabem que criar filhos não é um trabalho, e quem não trabalha não é ninguém nesta sociedade, é um inútil, um incapaz, “anda a mamar” dizem os que sofrem de azia. Todo e qualquer contributo que essa pessoa possa dar à sociedade não é considerado trabalho e é assim menosprezado ou ignorado.

Será que nos libertamos mesmo do jugo da ideia nazi do “Arbeit macht frei”, o trabalho liberta? Ou os propagandistas do pensamento único neoliberal venderam-nos o capitalismo com um embrulho tão resplandecente que nos cegou e não vimos a prenda envenenada?

Assim foram tratadas as mulheres durante milénios, ignoradas no seu papel fundamental de criarem os filhos, homens e mulheres de amanhã, que iriam afinal ser a sociedade do futuro.

– O que fazes?
– Sou doméstica, dona de casa!
– Ah, não fazes nada!

Só responde esta alarvidade quem nunca criou filhos e, ao mesmo tempo, cuidou do lar. Fique quem quiser em casa a criar filhos e logo verá se significa “não fazer nada”. Quanta injustiça, quanto perdão devemos às nossas mães (e, nalguns casos, aos nossos pais) por tudo o que fizeram por nós, e por tudo o que abdicarem por nós e nós nunca reconhecemos e muitos querem continuar a não reconhecer.

Esta petição pede apenas algo mais do que justo e legítimo: reconhecer esse trabalho que é feito por mães e pais. Uma petição que pede algo para todos nós. Para o bem de todos. Por uma melhor sociedade. E pelas crianças, que são o futuro, dizem e eu acredito que sim. Mas não basta dizer, é preciso fazer. E quem cuida das crianças faz, não o reconhecer é uma tremenda injustiça.

Eu já assinei a petição de Sandy Flesch! Assinem também, até 19 de Julho, se estiverem de acordo. Basta clicar aqui.

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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