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Cortar o pio a Trump não é censura

Li aqui no BOM DIA num artigo de opinião (e tive de reler porque não acreditei no que lia) que os canais de televisão norte-americanos que cortaram o discurso de Donald Trump em direto – aquele em que o (ainda) presidente dos EUA dizia que tinha ganho as eleições presidenciais quando todas as contagens e projeções apontavam para o contrário, e denunciava irregularidades no sufrágio sem avançar provas – relevava da censura e que esses media tinham violado um dos direitos fundamentais, o da liberdade de expressão.

O jornalista que sou – ainda sou, serei sempre, mesmo se neste momento não trabalho no meio –, viu o seu âmago e estômago revolverem-se duas vezes e tive de reprimir um refluxo e dois palavrões mas não me livrei da cefaleia. Tomei duas pastilhas Rennie, uma aspirina e descansei alguns dias.

Mas como vi que no desfiar dos dias mais coisas destas a proliferar nas redes sociais e que cada vez mais pessoas se confiam perdidas entre notícias, opiniões, liberdade ou não de expressão e “fake news”, não sabendo distinguir umas das outras, resolvi redigir estas linhas.

A liberdade de expressão não é a liberdade de dizer tudo e o seu contrário. Sobretudo se forem inverdades, vulgo mentiras. Claro que cada tolinho pode dizer todos os disparates que lhe passam pela cabeça. Mas já não pode, ou não deve, se esse mesmo tolinho tem responsabilidades públicas e que as imbecilidades que diz põem em causa a segurança pública, que foi precisamente o que Trump fez nesse discurso. E aliás, fê-lo durante todo o seu mandato dividindo, polarizando e antagonizando, ainda mais do que já estavam, os cidadãos dos Estados cada vez mais desunidos da América.

Hannah Arendt resumiu bem os limites da liberdade de expressão: “A liberdade de opinião [e, por extenso, de expressão, n.d.R.] é uma farsa se a informação sobre os fatos não for garantida e se não forem os próprios fatos que são objeto do debate” (Hannah Arendt, “Vérité et politique”, no livro “La crise de la culture”, Paris, Gallimard, 1972). Ou seja: podemos debater sobre fatos (causas, consequências, evolução, etc) mas não sobre a veracidade desses fatos, porque um fato só o é se tiver sido verificado. Debater sobre inverdades é estéril.

Bem sei que vivemos um momento da História em que para muita gente é difícil distinguir a verdade de uma mentira ou de um rumor. E Trump muito contribuiu para banalizar algo antes impensável: a mentira descarada. Os políticos (muitos, não todos!) sempre mentiram ou travestiram a verdade, bem sei, mas mentir descaradamente perante o óbvio foi um ponto de viragem na política e na História com Trump.

Recordo que o seu mandato começou com Trump a declarar que na sua cerimónia de tomada de posse tinha havido mais gente do que na de Obama e, aliás, do que na de qualquer outro presidente antes dele, o que as fotografias do evento claramente desmentiam, fotos de fontes diferentes mas que mostravam todas o mesmo. Mas ele insistia. Passou a ser verdade? Não! Mas passou a ser um facto alternativo, como ele próprio avançou, ou seja, uma mentira quase que consentida.

O que não era grave se tivesse sido o Carlitos, de nove anos, a dizer isso aos amigos do bairro. Mas foi o PR dos EUA e abriu um precedente grave.

Grave porque Trump embarcou assim o planeta inteiro na sua realidade paralela, um mundo de fantasia onde ele nunca perde, onde tem sempre razão, onde é o melhor e faz tudo melhor do que os outros, onde passa por um herói mesmo depois de ter gozado com um deficiente, um mundo no qual o que é verdade é aquilo que ele decide que é verdade, tudo o resto são “fake news”. Vários sites de verificação de factos (fact checking) estimam em mais de 20 mil as mentiras que Trump disse desde o início do seu mandato.

Os deveres do jornalista

Para um jornalista (mas devia ser assim para qualquer pessoa com bom senso) não há “fake news”! Se é notícia, é porque é verdade, é algo que foi apurado, verificado, comprovado, cabendo esse trabalho ao jornalista, no seu papel de “quarto poder”, de “cão de guarda”, ou seja, de “verificador” dos outros três poderes: o executivo (governo), o legislativo (parlamento) e o judicial (justiça). Se é mentira, não é notícia. Se não é notícia não deve ser noticiado. Simples! Não? Eu explico.

Quais são os deveres do jornalista perante as chamadas “notícias falsas”? O Código de Deontologia do Jornalista é claro sobre o assunto. Tomo como referência o Código de Deontologia do Livro de Estilo do jornal Público (seguido pela maioria dos jornalistas portugueses), mas o Código de Deontologia do Conselho de Imprensa do Luxemburgo e os de muitos outros países democráticos dizem mais ou menos o mesmo, apenas as fórmulas ou as expressões mudam, o conteúdo e o teor são os mesmos. Eu resumo. Os deveres do jornalista são: relatar os fatos com rigor, isenção e exatidão, verificar, e verificar, e outra vez verificar que os fatos são comprovados, distinguir entre notícia e opinião, não ser “pé de microfone” de acusações sem provas, bem como retificar prontamente as informações inexatas ou falsas. “Retificar prontamente”, leram?

Ora bem, foi seguindo todos estes critérios que prontamente os jornalistas dos canais acima mencionados se guiaram antes de cortar o discurso de Trump. Não releva do lápis azul, mas do trabalho mais básico de um jornalista, o de separar fatos e opinião, e o de denunciar distorções da verdade. Faça-se a distinção!

Como distinguir as ‘fake news’?

Quando me perguntam como se deve fazer para distinguir “fake news” e “notícias verdadeiras” (estas últimas aspas servem para salientar a redundância) digo-lhes que é muito simples:

a) Multipliquem as fontes de informação. Uma notícia “verdadeira” vai ser retomada pelos jornais, rádios, televisões, sites de notícias na sua essência, embora possa diferir na sua forma;
b) Consumam media sérios. Como saber se um jornal é sério? Se noticia notícias baseada em fatos, e no qual trabalham jornalistas que verificam as fontes e a veracidade do que noticiam, e se separam claramente as notícias das opiniões, e não veiculam rumores (fake news).

Um fato é algo (ação, evento) que aconteceu, que é verificável (datável no tempo e localizável no espaço) e cuja fonte é claramente conhecida. O rumor (fake news) caracteriza-se por ter contornos difíceis de apurar, não é verificável, não se sabe bem quando aconteceu, quem o protagonizou, quem o difundiu primeiro, tem sempre origens duvidosas.

Se se guiarem por estas linhas começarão a saber fazer sozinhos a distinção entre notícias e rumores (fake news), mas também a escolher melhor as vossas fontes de informação e media que consomem.

Quem quer ler sobre fatos alternativos, contra-verdades, desinformações enganosas, manipulações de fatos, boatos, bisbilhotices, patranhas, tangas, tretas, balelas, falsidades, efabulações, engodos, invencionices, pantominices, intrujices, endrôminas, petas, carapetas e afins, que não verificam fontes ou a veracidade do que propalam, tem muito por onde escolher, nos quiosques do Luxemburgo há vários títulos, e até em várias línguas, em Portugal também, desde as revistas cor-de-rosa que inventam namorados, separações e escândalos aos famosos, até aos tabloides sensacionalistas que entrevistam em exclusividade mundial humanos abduzidos e, por vezes, até os autores desses sequestros, extraterrestres de Peta Reticuli e de outros planetas inventados sempre com revelações bombásticas e claramente autênticas e verdadeiras. (Ler a última frase com ironia, sff!)

A França e outros países já se muniram de um arsenal legislativo contra as notícias falsas. E eu estou de acordo: produzir e veicular notícias falsas não é opinião nem liberdade de expressão, é crime. Porque daí podem advir consequências sociais e politicas graves contra a ordem pública e a paz social.

Na minha opinião, essa legislação anti-fake news deveria ser estendida às redes sociais, universo nebuloso onde muitas pessoas, ao abrigo de um perfil falso ou de um certo semi-anonimato, acham que podem dizer tudo sem verificar a veracidade do que estão a dizer, acusando e julgando impunemente, sem provas, improvisando-se advogados, jurados, juízes e carrascos. Este tipo de comportamento não é liberdade de expressão, é apenas maldade, azia pela vida alheia ou tempo diferido de cuidar da sua própria vidinha.

José Luís Correia
JLC17112020

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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