Ouviu-se o tilintar de pratos, copos e talheres. Cesi cravou em mim aquele seu olhar azul e gélido de gata siamesa e agitou as mãos num gesto de impaciência.
– Estão a arrumar… este chocalhar irrita-me! Vamos embora – disse, peremptória.
Olhou o relógio de pulso e acrescentou com uma ironia azeda:
– São muito pontuais na hora do fecho…
Tínhamos estado ali à conversa durante quase duas horas, naquilo que era, há uma década, o nosso lanche de Natal. Desde que deixáramos de frequentar a escola de arte onde nos tínhamos conhecido que não nos víamos com regularidade. Cesi levava uma vida previsível e monótona como um relógio, eu, sempre, sempre a correr, com um calendário a rebentar pelas costuras e onde parecia caber sempre mais alguma coisa.
Sem que estivéssemos particularmente ligadas àquele estabelecimento, a verdade é que, nos últimos anos, nos encontrávamos sempre no centro da cidade, na Namur, ela vinda de um bairro ao sul e eu de um bairro ao norte. Em frente ao Théâtre des Capucins, numa das ruas pedonais do coração da cidade, a pastelaria, confeitaria e salão de chá Namur era um dos mais prestigiados ex-líbris da cidade. Fundada em meados do século XIX, ostentava a insígnia de «Fournisseur de la Cour». O ambiente era agradável e tranquilo, de um chique discreto; as empregadas fardadas de negro,eram formais, solícitas e profissionais. A Namur oferecia um café de saco muito aromático, uma fina seleção de chás e tisanas, um chocolate quente espesso e saboroso que se colava aos lábios e à língua, croissants que se desfaziam na boca um sortido de pastelaria fina de grande requinte. De manhã cedo, era frequente cruzarmo-nos com deputados ou ministros que aí iam tomar o seu primeiro café e ler o jornal. Depois, era a hora das damas da burguesia e pelo meio dia, o salão do primeiro andar enchia-se de funcionários, bancários e outros alimárias que aí iam degustar um dos pratos do dia ou uma salada breve e refinada, propostos por um menu inteligente, reduzido e sempre sazonal.
Na Namur, Cesi e eu éramos alienígenas quase perfeitas. Mas Cesi queria ver gente, gente, gente. E o centro da cidade, a luzir de iluminações natalícias, com as artérias e as veias a pulsar de vida e o mercado de Natal apinhado de pessoas felizes a aquecerem-se com vinho quente era a escolha ideal.
Cesi – diminutivo de Cesira – e eu tínhamo-nos conhecido num ateliê de pintura. Para ser mais exata, eu frequentava aulas de pintura semanais e as de nu, quinzenais. Cesi frequentava irregularmente as de nu. Dependia do dinheiro que tinha. E tinha muito pouco. Cesira era taciturna. Quando lhe acontecia falar, tinha um marcado sotaque latino e era desdenhosa e agressiva. Por norma, chegava, desenhava e partia.
Cesira desenhava. E que talento! Acontecia-me suspender o meu trabalho e ficar a olhá-la, estarrecida. Meia dúzia de traços rápidos e o corpo saltava do papel. Para Cesira, tudo parecia fácil. Ao invés, eu lutava, sofria e quantas vezes desanimava e desistia. Na reta final da aula, era a modelo, a esguia e louríssima Mady, que perguntava a Cesira com que pose gostaria de terminar. Cesira decidia, Cesi reinava e ninguém se opunha. Cesira intimidava-me.
Mas a cidade era pequena e os estrangeiros, sobretudo lusófonos, hispanófonos, italianófonos e esquerdistas, acabavam por se cruzar em festas, conferências, concertos ou outros eventos. Foi o que aconteceu comigo e com Cesi. Vim a saber que nascera em Buenos Aires, de uma família de origem italiana. Chegara a frequentar Belas-Artes, mas não pudera continuar. Possuía um passaporte italiano, um passaporte para a Europa que lhe permitira fugir à pobreza. Tinha tios e primos em Itália. De Itália, mudou-se para o Luxemburgo, onde uma outra tia lhe arranjara trabalho. Cesi trabalhava a tempo inteiro para uma família que a tratava bem, ocupava-se das crianças que, entretanto, estavam quase a deixar de precisar dos seus cuidados. Vivia sozinha num minúsculo apartamento empoleirado um quinto andar sem elevador. «Sou como a Mimi da Bohème…», dizia a rir, «…esfalfo-me, mas os primeiros raios de sol são meus». De vez em quando, era assolada por profundas depressões, como naquele tempo em que nos cruzáramos pela primeira vez a desenhar a Mady. Cesi desenhava e pintava sempre que podia, com o que quer que fosse que apanhasse à mão. E ia para a rua, ver gente, gente, gente.
Pagámos. Vestimos casacos, enrolámos cachecóis, enfiámos, gorros e luvas. Saímos. Era noite cerrada há muito. Caíam uns fiapos de neve. Cesi enfiou o braço no meu e fomos caminhando de braço dado em direção ao parque de estacionamento. De súbito, num impulso inesperado, puxei-a noutra direção.
– Importas-te, Cesi, de vir comigo? Gostava de passar pela Hoffmann.
– A papelaria? Já deve estar fechada…
– Sei… – respondi – queria dar uma vista de olhos na montra.
Cesi deu mais uma mirada ao relógio de pulso escondido no canhão da luva, como se tivesse alguém à sua espera.
– Está bem, acompanho-te.
Eugène Hoffmann, fundada no princípio do século XIX, outro fornecedor da corte grã-ducal, hoje especializada em objets d’écriture e artigos de escritório da gama alta. Objets d’écriture, expressão deliciosa, quase um poema. Objetos escreventes, chamo-lhes eu, na tentativa vã de os proletarizar.
Eu sabia o que queria ver. Já por lá passara inúmeras vezes nos últimos dias. Aquela montra atraía-me como um ímane. Ficava estática frente à vidraça. Depois, sem coragem para entrar, consolava-me bebendo mais um café na porta ao lado.
Na montra da esquerda, os objetos da marca de que Hoffmannn é representante exclusivo, a Montblanc. Outros objetos, canetas de aparo, esferográficas e lapiseiras de outras grandes marcas. Alguma marroquinaria de luxo destinada a executivos. E na montra da direita, repousando num amplo estojo aberto forrado de cetim branco, as Flores de Cerejeira na Noite, o mais recente objeto escrevente da coleção Yukari, da Namiki. Namiki. A arte japonesa do Maki-e, lacar, desenhar, espargir e polir. Os pormenores gravados nos aparos. O negro, o ouro e a cor. Namiki, a perfeição.
Cesi surpreendeu-se. Desconhecia a minha paixão por canetas de aparo e tinta permanente. É natural, era uma paixão secreta e não consumada, uma paixão platónica de voyeuse discreta.
– Sim, se fizesse coleção de alguma coisa, seria de canetas de aparo -disse-lhe eu. Mas, sobretudo, colecionaria Namiki. Talvez só colecionasse Namiki.
– Porquê? Para quê? – perguntou Cesi, severa – Para as teres fechadas numa vitrina ou deitadas num estojo como cadáveres?
– Para as olhar, disse eu – Para lhes pegar, para as acariciar, para as apalpar devagar, para sentir a suavidade e o calor da laca nas mãos, na ponta dos dedos. Para ver o fio de tinta sair do aparo de ouro e espraiar-se no papel como um poema. Só isso já seria poesia… para escrever, sim.
– E escreverias melhor poesia com uma Namiki do que com uma vulgar Bic ou um simples lápis bem afiado? – perguntou Cesi, sarcástica.
– Não, respondi sorrindo – claro que não. Apenas com mais prazer ou, pelo menos, com outro prazer.
– Prazeres efémeros… – suspirou Cesi, de olhos postos na caneta.
– Sim, algum prazer não o é? – e sorri. Estás a ver, Cesi, as flores? São as flores da cerejeira, símbolos de renovação e, precisamente, da efemeridade da beleza. São talismãs portadores de felicidade, também ela efémera. Dizem que quando as flores da cerejeira caem de noite se produz um fenómeno extraordinário, Hana-akari. As pétalas ao cair em turbilhão como flocos de neve num céu escuro cintilam como estrelas e clareiam a obscuridade. Como pirilampos.
Cesira sorriu como se tivesse compreendido.
– O preço não está marcado – fez notar. Quanto custará?
– Não sei…mas será decerto um preço bárbaro, uns poucos milhares… Fora de questão. Mas há outras canetas Namiki, muito belas e com preços menos obscenos…
– Tens alguma? – perguntou Cesi, interessada.
– Não… ainda não me atrevi a comprar nenhuma – confessei embaraçada.
– Porquê? – perguntou Cesi, com lâminas na voz.
– Porque… porque… – e suspirei – é um objeto de luxo perfeitamente dispensável…
– Calvinista! – apostrofou-me Cesi, enraivecida. Era o pior insulto que podia arremessar a alguém. – Dispensável?? Mas deseja-lo! – e Cesira prosseguiu com crueza – O dinheiro é teu, não é? Ganhaste-lo a trabalhar, não foi? Não o roubaste, pois não? Não precisas desse dinheiro para comer, pois não?
Aflita, eu ia acenando afirmativamente com a cabeça.
– O que se passa? Achas que estarias a gastar mal esse dinheiro? Estás com pena dos pobrezinhos? Queres salvar mais um refugiado ou comprar mais uma prótese para alguma criancinha mutilada?
Não respondi. Entretanto as farripas de neve tinham-se transformado em flocos gordos como flores de algodão. Nevava copiosamente e estávamos ambas a tiritar de frio.
– Vamos – disse Cesira – Vens cá amanhã comprar uma caneta- acrescentou num tom que não admitia réplica.
À entrada do parque de estacionamento, Cesira decidiu que ia tomar o autocarro que a deixava à porta, que a estrada ia gelar – um perigo! – e que eu devia ir imediatamente para casa. «Depois mostras-me a caneta», disse a rir. Separámo-nos com um abraço apertado e votos de Festas Felizes.
Em casa, esperavam-me afazeres natalícios. O meu filho chegaria em breve para as Festas. Se o presépio pouco lhe dizia, gostava da árvore de Natal, das luzes, das velas e das bagas vermelhas dos ramos de azevinho. Para além da decoração, a lista de compras no supermercado. E os cartões de Boas Festas.
Cartões de Boas Festas. Havia pessoas que ainda os enviavam. Uma delas era o meu primo. Eu guardara religiosamente os cartões que ele me fora enviando ao longo dos anos, todos dentro dos respetivos sobrescritos, num maço atado com um cordel. As imagens que ele escolhia eram clássicas no conteúdo e conservadoras na forma: árvores de Natal, bolas e fitas, presépios, a grande estrela a alumiar a rota dos reis magos…Os votos eram também os adequados à época. As palavras, porém, não eram escritas à pressa. Era uma escrita lenta, pensada e calorosa, como um fogo lento que insiste em arder nas brasas de uma lareira. Eram palavras escritas com uma caneta de aparo grosso, uma tinta negra, espessa e lustrosa e o gesto fluido e elegante de quem tem o hábito da escrita e preza o próprio ato de escrever. Terminavam sempre com «Um grande abraço, Dinis e Lídia». Com que caneta escreverá ele, perguntava-me eu, ainda com a Lamy do pai?
Falara de cartões de Boas Festas com Cesi, das pessoas que tinham por hábito enviarmos, do quanto eu apreciava esse gesto e do cuidado que eu punha em escolher criteriosamente o cartão que, antes ou depois, enviava a cada uma delas. Cesi ouvira interessada, não se coibindo de dizer que, para ela, se tratava de um puro desperdício de tempo. Mas não falara dos do meu primo, aos quais nunca respondera. Tinha esta convicção, enraizada, anacrónica e estúpida, de que só com uma caneta de tinta permanente seria capaz de escrever ao meu primo. Ridículo.
O primo fora o companheiro querido de uma infância muito longínqua. Um primo matulão e gorducho, um punhado de anos mais velho, galhofeiro e cábula renitente, dado a travessuras que desesperavam os professores e os pais, os meus padrinhos. Com Dinis, as festas, os piqueniques nos pinhais e os grandes passeios de família aos domingos eram ligeiros e alegres. Depois, vieram o tempo e a vida fora de portas. Afastámo-nos sem especial razão, como tantas vezes acontece. E quanto mais o tempo passava, mais longínquo e difuso se tornavam a figura e o riso do primo. E a cada cartão de Boas Festas que dele recebia, crescia a vergonha por não ter retribuído os votos expressos no cartão do ano anterior, por não ter procurado saber dele, por ter deixado o silêncio crescer num fosso cada vez mais cavado e intransponível.
E se, entretanto, o primo se tivesse transformado num ser execrável? E se, ao retomar o contacto, eu chegasse à conclusão de que não tinha nada para lhe dizer? Seria talvez melhor deixar a infância enterrada naquela espécie de cemitério de flores povoado de memórias boas, de um tempo em que se festejavam aniversários, a família era grande, eu era quase feliz e ninguém estava morto, como no poema do Álvaro de Campos.
No dia seguinte ao fim da tarde, cheguei a casa com um embrulho. Era uma caixa de madeira. Desatei as fitas vermelhas em torno da caixa, levantei-lhe a tampa e fiquei a contemplar a caneta durante largos minutos. Namiki, Nippon Art, Peixe Dourado. Libertei a caneta e o tinteiro da espuma em que estavam encaixados, desenrosquei a caneta, desenrosquei a tampa do tinteiro, apertei o reservatório entre o polegar e o indicador, mergulhei cuidadosamente o aparo no tinteiro, aliviei a pressão dos dedos, fiz subir a tinta no reservatório, retirei o aparo do tinteiro e limpei-o com um lenço de papel. Enrosquei a caneta. Escrevi várias vezes o meu nome num papel de rascunho, só para experimentar. Deslizava perfeitamente. Tal como eu suspeitara, não era a minha mão que emprestava segurança à caneta, era a caneta que me fortalecia a mão.
«Obrigada, Cesi!», disse para comigo.
Sentada à secretária, escolhi um papel blanc cassé de uma bela gramagem. Com o papel mata-borrão à mão, empunhei a caneta. Quase a pousar o aparo no papel para escrever a data e o vocativo, suspendeu-se-me a mão, subitamente paralisada. Olhei para o papel e tudo em meu redor embranqueceu. Também a minha mente ficou enevoada, tolhida pela vaga de pânico que me submergiu. O pavor da folha branca, o horror da tela branca. O choque do vazio. A vontade de amarfanhar o papel, deitá-lo ao lixo e correr porta fora.
– E agora? – murmurei para mim própria, enquanto olhava a caneta e o peixe vermelho – O que é que vou escrever ao meu primo?
Eduarda Macedo