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As vidas dos outros

Poucas votações me ficaram tão presas na pele como esta que hoje, quinta-feira, decorreu no plenário em Estrasburgo. Tratou-se do voto sobre a criação de mecanismos europeus de protecção de vidas no Mediterrâneo. Foi uma negociação longa que colmatou numa votação também ela longa e muito dividida. Quando todas as emendas ao texto proposto já tinham ido a votos e chegámos ao voto final, aconteceu o impensável na minha cabeça. A proposta de salvar vidas foi chumbada por dois votos, 290 contra 288. Um murro no estômago, um nó na garganta. Pensei para comigo: há mesmo uma maioria de representantes que quer que continuem a morrer pessoas no Mediterrâneo? Ainda não recomposta, a bancada da extrema-direita celebrou e gritou entusiasticamente o resultado final. Do outro lado do hemiciclo, silêncio e impotência. A maioria tinha mesmo decidido que quem se faz ao Mediterrâneo não deve ter acesso a salvamento ou resgate, que nenhuma das vidas perdidas contou.

Se dúvidas tivesse, este voto, este momento em concreto, foi a consagração de que o ódio e o medo já são maioritários. Para esta maioria, os milhares de vidas perdidas no Mediterrâneo não são sequer um problema, uma dorzinha, um ataque à nossa humanidade e à nossa capacidade de vivermos em conjunto.

A maioria dos meus colegas decidiu mesmo que não se devem apoiar as missões de salvamento e resgate, que as pessoas e organizações que trabalham para salvar vidas devem ser criminalizadas, que se devem manter os campos de detenção onde todos os dias são violados os direitos humanos, que não temos obrigação de prestar assistência e socorrer quem precisa, que não devemos assegurar um desembarque seguro, que não deve haver cooperação entre os países para receber quem chega.

A extrema-direita não tem maioria no Parlamento Europeu, para celebrar efusivamente esta “vitória”, precisou dos votos favoráveis dos que se chamam democratas cristãos, precisou que a direita democrática parlamentar lhe fizesse o favor de poder celebrar a morte. A extrema-direita nunca teria chegado aqui sem a bengala das famílias políticas ditas responsáveis e defensoras de valores humanos. Este voto foi a confirmação de que, com ou sem festa, estão do mesmo lado, do lado que assume que nem todos merecem ser tratados por iguais e que milhares de vidas perdidas são “efeitos colaterais” na defesa do eles chamam o “nosso modo de vida”. Curta memória que esquece rapidamente o ainda recente momento da história em que os fluxos foram no sentido contrário. Vergonha de quem não assume, nem quer assumir, os princípios mais básicos de dignidade e protecção da vida humana consagrados pelo direito internacional. Honra seja feita a duas deputadas e um deputado do PSD, Cláudia Monteiro de Aguiar, Lídia Pereira e Paulo Rangel, que não seguiram o sentido de voto do seu partido ou da sua família política, onde se inclui o CDS/PP. Feitas as contas, na hora da verdade, o que distingue a direita da extrema-direita nestes temas é mesmo só o volume sonoro da reacção ao voto. Vamos assim assistindo à vitória da desumanização.

 

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