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Anjo da morte?

A palavra eutanásia deriva da composição dos vocábulos gregos “eu” (bom, verdadeiro) e “thanatos” (morte), o que literalmente significa “boa morte”, sem sofrimento. É natural que o ser humano não pretenda sofrer. E só alguém profundamente insensível não sente compaixão por quem está a passar por grande tormento físico e psicológico, e não compreende o cansaço de se estar vivo e ansiar a morte, tamanha a angústia a cada dia, que não traz a esperança de dias melhores. Não é, por isso, muito difícil abordar muitos dos argumentos a favor da despenalização da eutanásia:

  1. A liberdade e total autodeterminação individuais, incluindo o direito a dispor da própria vida, devem prevalecer sobre a vontade dos demais em comunidade, porque só quem amargura sabe o que está a viver.
  2. A proposta de lei é restritiva e tem critérios muito bem definidos, evitando assim exageros e a conhecida “rampa deslizante”.
  3. A decisão da eutanásia pode, efectivamente, decorrer de influências sociais, mas as mesmas são uma constante na vida de todo o ser humano, pelo que não deve ser diferente nas questões de morte.
  4. Se matar alguém é legalmente aceite nalgumas circunstâncias, incluindo autodefesa, cenários de guerra e, nalguns países, pena de morte, porque não admitir a morte de um ser humano que sofre, num gesto de marcada compaixão e humanidade.
  5. Para quem se escuda no Juramento de Hipócrates, a que se submetem os médicos, e que os impede de matar um doente, saiba-se que o juramento original impedia a realização de cirurgias, a prática de aborto ou a cobrança de honorários pelo exercício das funções médicas, o que veio a ser alterado. Ou seja, nada impede nova alteração com o progresso dos tempos.
  6. Ninguém é obrigado a pedir eutanásia, tal como não é obrigatório fazer um aborto. Nesse sentido, porque hão-de terceiros decidir em nome do próprio?

Serão estes argumentos irrefutáveis? Neles parece constar bom senso, sensibilidade e compadecimento. Deste modo, como pode a eutanásia ser vista como algo cruel? Resposta por partes:

  1. A questão da total autodeterminação individual nesta proposta de lei é uma falácia. Aliás, estabelece gravíssimos constrangimentos dessa “liberdade”, ao introduzir os factores desigualdade e injustiça. Com uma Comissão responsável por determinar os “contemplados”, muitos haverá que não serão atendidos na sua pretensão de eutanásia. Nessa concepção, não será perverso “condenar” à vida uma pessoa que se sente em martírio e que pretende morrer?
  2. Ao prever-se critérios bem definidos para o efeito, continua a não existir total autodeterminação individual, pois a eutanásia deveria ser uma decisão única e exclusiva da pessoa. Mas, por esse prisma, qualquer indivíduo, mesmo que saudável, poderia solicitar ser morto, o que constitui crime.
  3. Não se pode igualar as pressões sociais em vida às pressões sociais para a morte – aqui é irreversível. Chegarão os dias em que filhos, sentindo-se sobrecarregados, exaustos e em calvário, por tratar dos pais enfermos e dependentes, lhes proporão, com docilidade, a eutanásia. E os pais, por amor imensurável aos filhos, solicitarão o procedimento para não mais serem um “fardo”.
  4. As questões da autodefesa e cenários de guerra (e mesmo a pena de morte) partem do pressuposto de que há outras vidas a proteger, o que justificaria a morte do indivíduo. Ora, na eutanásia, a vida em questão não pressupõe risco para outras vidas.
  5. Se o Juramento de Hipócrates alguma vez prescindisse do “respeito absoluto pela Vida Humana (…) mesmo sob ameaça”, a Saúde do doente deixaria de ser a “primeira preocupação” do médico, como consta no documento, e passaria a ser segunda, pois prevaleceria a Vontade. A partir do momento que tal ocorresse, a relação médico-doente ficaria ferida de morte – não raros são os pedidos de doentes que vão contra uma prática clínica adequada e segura.
  6. De facto, ninguém obriga a escolher a eutanásia, mas a Lei não funciona assim. São inúmeras as escolhas individuais, sem prejuízo para as demais, consideradas inaceitáveis do ponto de vista legal, social e moral, pelo que não se despenalizam. Tal acontece porque, para além da sua liberdade individual, o indivíduo faz parte da comunidade e tem uma identidade colectiva que resulta dos limites definidos pela cultura onde se insere. Por exemplo, a poligamia poderia passar a ser legal pois ninguém obrigaria o outro a ser polígamo; na sociedade ocidental é actualmente inconcebível.

O assunto da eutanásia não parece mais do que um fait divers para entreter as mentes mais distraídas, assente em pressupostos abstractos. Há assuntos bem mais importantes para debater e medidas a implementar. Os entendidos falam (e bem) da aposta em cuidados paliativos. A distanásia e a obstinação terapêutica são também um enorme problema, pois os médicos não são devidamente formados para saber quando dizer “Pára tudo!”, evitando exames e tratamentos causadores de sofrimento desnecessário. Não menos premente é averiguar o possível aumento directo ou indirecto de taxas de mortalidade, fruto de diagnósticos e tratamentos tardios, resultantes da cada vez maior ineficácia do Serviço Nacional de Saúde.

Também é fait divers o esforço para encontrar outras palavras para eutanásia, como “morte doce” ou “morte digna”, quando “eutanásia” é já uma palavra sem carga negativa (“morte boa”). O mesmo não é válido para outros conceitos nas actuais circunstâncias e que carecem de léxico mais adequado. Aquele que mata outro ou é autor moral dessa morte (como o legislador) é “assassino” ou “homicida”. Urge, por isso, encontrar outros conceitos, pois nenhum doente em intolerável sofrimento pretenderá chamar o “assassino” que lhe garanta a “morte doce”. Talvez: “anjo da morte”?

Joana Bento Rodrigues

Médica

Membro da Comissão Executiva da TEM/CDS

A autora não reconhece o AO 1990.

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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