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A invisibilidade e solidão de quem vive com limitações e sem apoio familiar

Vivemos numa sociedade que fala cada vez mais sobre inclusão, empatia e direitos humanos. Mas para muitas pessoas com deficiência, sobretudo quando essa deficiência não é visível de imediato ou não se encaixa no imaginário comum do “herói inspirador”, a realidade é bem diferente. Existe um silêncio social que não se traduz apenas em falta de acessibilidades, mas numa forma de invisibilidade emocional e institucional. E, por vezes, esse silêncio começa dentro da própria casa.

A família, que deveria ser o primeiro refúgio, pode tornar-se um espaço de limitação, desvalorização e bloqueio afectivo. Não são raros os casos em que as necessidades emocionais, relacionais e existenciais de pessoas com deficiência são vistas como secundárias ou até inconvenientes. Como se a vida afectiva, o direito a um relacionamento ou a um momento de fragilidade emocional fossem prémios a conquistar e não aspectos intrínsecos da condição humana.

Em muitos lares, o cuidado transforma-se em controlo. A protecção justifica o paternalismo, a infantilização ou a invalidação das emoções. Pequenos gestos, como querer consolar uma criança ou aproximar-se afectivamente de alguém, são mal interpretados, censurados ou reprimidos, deixando marcas profundas no desenvolvimento emocional. Crescer com a mensagem implícita de que o nosso afecto é excessivo, inadequado ou não merecido é uma das formas mais silenciosas de exclusão.

E depois há a vida adulta. Quando finalmente se tenta exercitar a autonomia, a conquista de um espaço amoroso, surge frequentemente o veto, mais ou menos subtil, da família. Seja negando apoio, recusando a presença de alguém importante num encontro familiar, ou simplesmente desprezando a importância dessa ligação. Numa sociedade que insiste em ver a pessoa com deficiência como um eterno dependente, qualquer tentativa de amar ou ser amado é tratada com desconfiança. Como se a dignidade afectiva fosse privilégio de quem “tem tudo em ordem”.

E o que dizer da questão económica? Viver com uma prestação social de 564 euros mensais (como é o caso do Complemento por Inclusão) num contexto urbano como Lisboa é uma prova constante de sobrevivência. Quando a família se recusa a apoiar financeiramente mesmo que de forma pontual, isso não é apenas uma recusa prática. É uma mensagem de desvalia, de “não vales o suficiente para merecer mais”. E cada gesto desses vai somando, não apenas no saldo bancário, mas na auto-estima.

É neste contexto que muitas pessoas se sentem levadas ao limite. O pensamento suicida não surge do nada, nem é um capricho emocional. Surge quando a dor se torna invisível aos olhos de quem deveria ver. Quando cada tentativa de aproximação é recebida com distância. Quando mesmo pedindo ajuda, o eco é de culpa ou silêncio. É urgente falarmos disto sem rodeios: não é a deficiência que leva à exaustão emocional, mas sim o abandono, o julgamento e a exclusão.

Mas ainda assim, há uma saída. Há redes de apoio, há vozes que escutam, há iniciativas que precisam de ser conhecidas e valorizadas. A linha SOS Voz Amiga, o apoio psicológico do SNS 24, as associações que trabalham pela inclusão com empatia real. Há também o poder da palavra escrita, do testemunho, do levantar da voz. Tornar visível o que foi sempre invisível.

Esta é uma chamada de atenção, não uma acusação. É um apelo para que olhemos, de frente, para a solidão de quem vive com limitações não só físicas, mas sociais e afectivas. Para que ninguém mais seja afastado por querer amar, por querer ser ouvido, por simplesmente desejar existir com dignidade.

Porque o verdadeiro obstáculo à inclusão não está nos corpos, mas nas mentalidades que insistem em reduzir uma vida inteira a uma “pessoazinha”.

Essa expressão — “pessoazinha” — pode parecer inofensiva, até ternurenta, mas dita vezes sem conta, em contextos de conflito, de desvalorização ou em frente a outros, torna-se uma arma subtil. A palavra diminui, encurta, reduz. E mesmo quando não se diz com intenção declarada de magoar, o efeito que produz é real. Interioriza-se a ideia de que se é pequeno demais para ser ouvido, frágil demais para ser respeitado, dependente demais para ser livre.

Quem a ouve desde cedo carrega uma sombra silenciosa: a de não se sentir suficiente, a de duvidar do próprio valor. Quando é o pai, a mãe ou alguém próximo a repetir essa palavra — directa ou veladamente —, a marca não é só emocional: é existencial. Torna-se mais difícil acreditar que se merece amor, voz, presença. Que se tem direito à autonomia, ao espaço, ao afecto.

E é por isso que escrever e tornar público este tipo de testemunho, mesmo que despersonalizado, é tão importante. Porque há muitos a quem foi retirada essa voz. Muitos que ainda vivem como “pessoazinhas” na narrativa de outros — mas que, por dentro, são inteiros, complexos, dignos. E é tempo de dizê-lo, com todas as letras: ninguém é pequeno demais para ser respeitado. Ninguém deve ser reduzido à sua condição. Todos merecemos existir com lugar e nome próprios — e não em diminutivo.

António Ricardo Miranda

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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