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A inexistência de 35 mil votos perfeitamente identificados

A menos que seja para tentar apagar o mal que fizeram, o recurso apresentado pelo PSD ao Tribunal Constitucional para contabilizar como abstenção os votos que foram anulados nos círculos da emigração é totalmente contraditório com a pressão brutal que, na noite do escrutínio, os delegados do PSD fizeram para que fossem anulados todos os votos que não tivessem uma fotocópia do Cartão do Cidadão. Se foram contabilizados mais de 35 mil votos nulos, é ao PSD que cabe inteiramente a responsabilidade.

Só assim se pode compreender que agora queiram considerar como “inexistentes/ausentes” aqueles votos de cidadãos que foram devidamente identificados através da leitura ótica do código de barras onde está registado o seu nome e endereço, o que por si só revela um inconcebível desprezo pelos eleitores. Ou então porque pretendem com este expediente maquilhar a derrota no conjunto dos círculos da emigração, subindo algumas décimas, mas mesmo assim injustificável em virtude da perturbação que provoca ao atrasar a tomada de posse da Assembleia da República e do Governo.

O entendimento do PS na noite da contagem dos votos da emigração foi diametralmente oposto ao do PSD e, por isso mesmo, apresentou nas mesas de escrutínio uma reclamação nesse sentido. Havendo uma deliberação da Comissão Nacional de Eleições que abria a porta a que os votos sem a cópia do Cartão do Cidadão pudessem ser admitidos como válidos, e tendo a mesa de escrutínio o poder soberano de os validar ou anular através de votação maioritária dos seus membros, o PS considerou que deveria ser honrada a vontade dos eleitores participarem, considerando válidos todos os votos que tivessem pelo menos uma forma de identificação segura do eleitor, o que aconteceu em várias mesas.

Além disso, pesa na argumentação a evolução tecnológica nos processos eleitorais e a forte preocupação que nos últimos anos houve relativamente à proteção de dados pessoais a nível europeu e nacional. Em termos tecnológicos, a realização no distrito de Évora da experiência piloto de voto eletrónico nas últimas eleições europeias levou à desmaterialização dos cadernos eleitorais, o que agora permitiu que os eleitores fossem identificados por meio de leitura ótica num código de barras. Por outro lado, durante a campanha eleitoral, era frequente ouvir os eleitores portugueses no estrangeiro dizer que recusavam enviar uma cópia do Cartão do Cidadão por recearem que os seus dados pessoais viessem a ser utilizados indevidamente. Um receio compreensível, não obstante a lei obrigar à destruição das cópias dos cartões do cidadão após a contagem dos votos.

Acresce que estas eleições foram as segundas (depois das europeias) que ocorreram após o enorme aumento do universo eleitoral, que passou de cerca de 320 mil eleitores para perto de um milhão e meio, precisamente com o intuito de dar voz e influência às comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo. Com a aprovação da Lei, o Governo, deputados, diplomatas, conselheiros das comunidades e responsáveis associativos fizeram uma forte campanha de apelo à participação cívica, para que os resultados fossem tão expressivos quanto possível e as nossas comunidades valorizadas pela sua participação, o que aconteceu porque os votantes quintuplicaram relativamente às eleições de 2015.

Por todas estas razões, foi desconcertante ver o PSD fazer tábua rasa deste contexto e deste conjunto muito consistente de argumentos, apelando à anulação dos votos, deitando assim literalmente para o lixo a vontade de participação de mais de 35 mil eleitores residentes no estrangeiro. E foi com este propósito que os delegados do PSD na noite eleitoral andaram de mesa em mesa a tentar garantir que eram considerados nulos todos os votos sem o Cartão do Cidadão, chegando mesmo em alguns casos a haver tensão entre os membros das mesas e os delegados. Em algumas mesas chegou mesmo a verificar-se a situação absurda de haver mais votos nulos que válidos.

Talvez o PSD tivesse receio de perder o único deputado que tem pelo círculo da Europa, porque sabia que o PS estava com uma vantagem confortável, como se foi percebendo à medida que a contagem avançava. Com efeito, é plausível pensar que se não tivessem sido considerados nulos 26.706 votos na Europa, o PS teria um resultado muito melhor, podendo até ficar mais perto de eleger os dois deputados por este círculo eleitoral.

Compreende-se que o resultado nos círculos da emigração seja difícil de digerir para o PSD. No círculo fora da Europa o PS elegeu um deputado, coisa que já não acontecia há 20 anos. E na Europa ganhou muito confortavelmente em todos os países, em algumas áreas consulares mesmo com mais do que o dobro em relação ao PSD.

O PSD poderá agora querer reescrever a história, mas certamente não conseguirá apagar a atitude inaceitável e antidemocrática que assumiu na noite da contagem dos votos da emigração, ao instruir os seus delegados e membros da mesa para anularem os votos que pudessem, mesmo com os eleitores devidamente identificados.

 

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