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A importância de ser pequeno

Primeiro começaram-lhe a surgir, aqui e ali, umas pequenas gotas de suor espalhadas pela testa. Mas à medida que o tempo ia passando, e a tensão aumentava, as gotas de suor pareciam aumentar de volume, ao ponto de ficarem por si só pesadas o suficiente para lhe escorrerem para o meio da testa, formando uma espécie de fio, que por sua vez descia pelo nariz até se lançarem como um salto no escuro, até aos queixos, e daí caírem no que para elas, as gotas de suor, deveria ser o cair no abismo.

O mecânico americano lançou-me um olhar de esguelha, aquele tipo de olhar que de tão silencioso e ao mesmo tempo aflito, grita quase de maneira ensurdecedora, por uma desesperada ajuda, do tipo, salva-me por favor.

Estávamos na Irlanda do Norte, numa pequena vila piscatória chamada Kilkeel, a cerca de 49 milhas (79 kms) de Belfast, e 133 de Dublin, numa companhia chamada BE Aerospace, companhia essa que fabricava assentos para os aviões, desde os mais simples aos mais sofisticados.

Decorria o ano de 2007 e era o meu primeiro contrato a trabalhar como técnico na “aerospace industry” ou como em português se designa, técnico da indústria aeroespacial, ou também, indústria aeronáutica. Que importa… vai dar ao mesmo.

Numa companhia que nessa altura empregava mais de mil pessoas, e que tinha como principais clientes algumas das mais conhecidas companhias aéreas, eu estava na linha que construía um protótipo para a United Airlines, de um produto, nessa altura, completamente novo, e de certa maneira revolucionário.

Não me sendo permitido, mesmo depois de passados todos estes anos, entrar em muito detalhe, posso no entanto dizer que, construíamos um assento para ser instalado nos aviões, e nem sequer faço referencia ao modelo, aviões esses que faziam ligações de longa distância, com assentos de primeira classe para “business executive”, e que eram autênticos pequenos escritórios moveis onde, quem fizesse a viagem nessa pequena, inteligentemente bem desenhada em termos de engenharia, concha, tinha um assento que reclinava até se tornar numa confortável cama, que tinha consola de jogos, vídeo, varias tomadas para conectar telemóvel, computador e outros utensílios familiares a pessoas de negócios. Nessa mesma concha tinha também um pequeno armário onde se podiam guardar alguns utensílios de higiene pessoal, onde as pequenas portas eram também o espelho que muito auxílio facilitaria, por exemplo, a quem, durante o trajeto da sua viagem, precisaria de desfazer a barba.

E era precisamente a colocação, ou melhor dizendo, a montagem, desse pequeno armário que causava ao mecânico americano todas as gotas de suor que agora tinham como nascente a sua testa, e como caudal, todo o resto do seu rosto.

Para entendermos um pouco melhor esta história, talvez seja agora a altura para nos situarmos na mesma, coisa que, fosse eu um escritor, e não um aspirante a feiticeiro, já o deveria ter feito há bem mais tempo, poupando quem sabe, uns bons parágrafos, que tanto assustam aqueles que são típicos leitores de Facebook, ou outras tretas do género.

Como disse, este novo produto era um protótipo, que como qualquer outro protótipo, está sujeito a pequenas mudanças, ajustes, e improvisações. 

Eu que há cinco meses estava, junto com outra equipa de mais cerca de dez ou doze técnicos, a trabalhar com os engenheiros responsáveis pelo design do produto, sabia bem, desde a primeira vez que começamos a montar a concha no seu todo, que havia um problema ao fixar este pequeno armário na parede da concha, uma vez que um dos parafusos que o seguravam, não só não havia visibilidade para lá encachar a ponta da chave de fendas, como, pior ainda, para lá chegar tinha que se contornar um ângulo com a chave, que chegava a ser irritante e frustrante, para obter o resultado pretendido.

A companhia Americana United Airlines, tinha enviado desde a Carolina do Norte, uma equipa dos seus mecânicos e engenheiros que ficariam uns dias connosco para aprenderem todos os passos precisos para desmontarem os assentos e voltarem a montar, uma vez que, depois de enviados desde Kilkeel da BE Aerospace na Irlanda do Norte, para o hangar da United Airlines na Carolina do Norte na América, onde iriam ser montados dentro do avião a que pertenciam, ou passariam a pertencer, era operação necessária para os fazer passar nas portas para dentro do aparelho.

O mecânico da United Airlines tentava agora fixar o tal parafuso para que o pequeno armário ficasse fixo dentro da concha. Mas das muitas tentativas que já tinha feito, não conseguia nem por nada encaixar o raio do parafuso.

Com uma equipa de outros cinco ou seis mecânicos , mais dois engenheiros, mais o chefe da sua equipa, e isto para não incluir a nossa equipa da BE que lhes dávamos formação para que eles aprendessem aquilo que nós já sabíamos, não por sermos melhores ou mais inteligentes, mas porque acompanhávamos o produto desde a sua criação, o pobre do mecânico, vendo as suas tentativas falhadas naquilo que à partida parecia uma tarefa tão simples como básica, a de apertar um parafuso, começou a entrar numa frustração tão grande que, sei, tenho a certeza porque mesmo que nunca tenha ido à lua, para saber que a lua está la, também sei que a sua frustração escalou para um stress tão tremendo que se manifestava nas gotas de suor que como sementes a desabrochar na terra se espalhavam pela sua testa.

Delicadamente peguei-lhe na chave de fendas e comecei por lhe dizer,

Se olhares à tua volta, nenhuma destas pessoas consegue apertar este parafuso. Não é culpa de ninguém. Muitas vezes uma boa ideia é boa não só por ser complexa, mas da capacidade de fazer da complexidade, simplicidade. Os nossos engenheiros aqui fizeram o contrário. Da simplicidade criaram o complexo. As boas noticias é que eles já sabem disso e já estão a trabalhar no sentido de fazer o simples, simples. No entanto, por agora, temos de lidar com a complexidade desta simples tarefa. Como? Bem… eu descobri o segredo. Como sabes o parafuso está algures aí por trás, num sítio que não tem visibilidade. Para complicar a situação, para lá chegar há um angulo qualquer que ninguém sabe se está mais para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo, a trinta e cinco, a quarenta e cinco, ou a noventa graus. Por isso, a solução é tão simples quanto isto. Não podendo ver o parafuso com os olhos, tens de o ver com a mente.

E ao mesmo tempo que lhe dizia isto, fui introduzindo a chave de fendas em direção ao parafuso, e continuei, Deixas deslizar a chave de maneira suave, e com os olhos da mente postos na ponta da chave, não só vais encontrar a cabeça do parafuso, bem como o ângulo em que tens de rodar a chave.

Fez-se um silêncio absoluto. Estávamos numa sala reservada para esta formação aos nossos amigos americanos, isolada do resto da fábrica, por isso, quando todo o mundo se calou para me ouvir, o silêncio fazia sobressair a minha voz e as minhas palavras, algo que, graças a Deus, na altura, em não me apercebi bem, pois se tivesse apercebido, tinha realizado no possível embaraço em que me estava a meter, caso a coisa não tivesse corrido bem.

Mas… à medida em que ia rodando a chave, a certo ponto senti que ela se tinha fixado na cabeça do parafuso. Coisa que me deu a confiança suficiente para continuar o meu discurso.

Boys, disse-lhes, quando os olhos não conseguem ver, a mente consegue sentir, e isso é o que literalmente significa, ver com os olhos fechados.

Dito isto, rasguei um sorriso quase de orelha a orelha, e agora com mais confiança, comecei a rodar a chave.

A cada segundo que a rodava sentia-se o pequeno armário a segurar de encontro à parede da concha e a ganhar firmeza, até que, um último rodar, e o armário ficou solidamente seguro. Nada o fazia mexer.

Os americanos soltaram um suspiro em uníssono e largaram a bater palmas, com largos sorrisos rasgados no rosto, e naquele momento lembrei-me de duas coisas.

Talvez possa parecer treta malagueta, mas não é, é pura realidade. Lembrei-me dos filmes em que estão todos numa sala numa apreensão enorme como se a qualquer momento a desgraça seja inevitável, e no último segundo, o herói salva todo mundo da catástrofe, e nessa altura, na sala de controle explodem todos numa alegria contagiante de abraços e sorrisos, e ao lembrar-me disso, pensei, “são mesmo americanos.” E lembrei-me do meu saudoso pai que em tempos que já lá vão tão longínquos, dizia que eu não tinha jeito nem para espetar um prego.

Pois é senhor António, para espetar um prego talvez não, mas para apertar um parafuso, ninguém é melhor do que eu. Deus trabalha mesmo em caminhos misteriosos.

Voltei a desapertar o parafuso e entreguei a chave ao mecânico americano.

Apertei-lhe o ombro de maneira firme mas não brusca, só para lhe dar motivação e disse-lhe.

“Lembra-te, respira fundo, fecha os olhos porque não vais precisar deles para executar esta tarefa, e põe os olhos da tua mente na ponta da chave de fendas e vais ver que vai ser fácil.

O mecânico limpou o suor da testa, pegou na chave, respirou fundo, não fechou os olhos totalmente, semicerrou-os, e começou lentamente a rodar a chave. 

Fez-se novo silencio absoluto, e à medida que ele rodava a chave eu concentrava-me na sua expressão à espera de um sinal que me dissesse, mesmo antes de os outros se aperceberem, que ele ia ser bem-sucedido. Foi quando vi as rugas da sua testa se estenderem até que ela ficou completamente lisa, e a descontração que surgiu dos seus ombros como se um fardo pesado lhe tivesse caído de cima, que eu percebi que sim, que ele ia suceder desta vez. 

Quando o armário ficou solidamente fixo contra a parede da concha, nova explosão de risos e abraços, uns murros disferidos no ar, enquanto se ouvia, “Yes, yes”.

O mecânico levantou-se e veio dar-me um forte abraço.

Enquanto me esmagava os ossos contra si, visivelmente satisfeito, disse-me,

“Thank You Fanando, you are a legend.

É a tal coisa, a importância das pequenas coisas. Afinal de contas o grande feito de que falamos aqui tem haver com um parafuso que era dificil de apertar mas do qual, sem completar essa simples tarefa, não se podia avançar no sentido de completar o resultado final.

Quando os nossos amigos americanos regressaram à Carolina do Norte, uns dias depois enviaram um email para a BE Aerospace, email esse que foi colocado nos quadros de informacoes espalhados por vários pontos da fábrica há vista de todos, e que, de uma maneira mais o menos resumida, agradecia à BE Aerospace em Kilkeel na Irlanda do Norte, todo o suporte e a maneira profissional e amigável como tinham recebido a equipa da United Airlines da Carolina do Norte, e em especial “To the portuguese, Fanando, for is professionalism and kindness, and in the same time finest sense of humor… explanning to our mechanics all the operations to assemble and disassemle the platinum first class seats…”

Quando comecei a escrever este texto, a ideia de o fazer tinha surgido quando peguei numa vassoura para varrer o chão da minha secção. Ou seja, da secção onde trabalho agora, a fazer e a montar peças que juntamente com outros processos, uns mais, outros menos complicados, irão fazer parte do motor de um avião.

Porque entretanto recebemos autorização para parar todo o trabalho enquanto os engenheiros lidam com a resolução de alguns problemas que sempre surgem de vez em quando, e porque eu não tenho paciência para estar muito tempo sem fazer nada, peguei numa vassoura e comecei a varrer.

Depois de ter concluido a minha tarefa, de ter despejado os lixos, parece que ficou tudo muito mais airoso, mais professional.

Foi entâo que me surgiu a ideia de realçar a importância das pequenas coisas. Aquelas que a maior parte das vezes nos passam despercebidas, mas que tanta importância tem.

O tipo que inventou a vassoura não tem menos importância do que aquele que inventou o avião. Talvez possa soar um pouco absurdo tal afirmação, mas se tivermos em conta que cada macaco em seu galho, a árvore tem uma função para cada um deles, e é no conjunto de todos eles que a árvore desempenha bem o seu papel.

Se calhar estou a ficar cansado com este texto, ate porque toda esta conversa foi por causa da vassoura e do tipo que a inventou.

Ou, mais certo seria dizer que Levi Dickenson não inventou a vassoura mas sim, aperfeiçoou uma ideia que o povo já vinha utilizando de modo mais rudimentar.

Bem, não admira que o Facebook ultrapasse de longe aqueles que ainda resistem a comprar livros, ou a ler textos, alguns grandes como este.

Mais valia ter posto uma fotografia de uma vassoura no Facebook, e uma frase…”A importância das coisas pequenas”.

E para que a esposa ficasse feliz da vida… até lhe tirava a fotografia numa das raras vezes em que ela pega na vassoura para varrer a cozinha.

So tinha que ter a certeza que todos perceberiam que a importância das coisas pequenas se referia à vassoura e não a ela…

Carago… carago não… carago.

António Magalhães

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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