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O Último Pastel de Nata

Acordei. O maldito despertador ainda não tinha tocado. Maldito, sim. Nos últimos meses, o que antes acreditava ser impossível, tornou-se um hábito. Em Portugal, ia, entre sonhos e tropeções, pedir que o zumbido crescente se atrasasse mais dez minutos. Provavelmente, não sou o único a usar o truque de colocar o despertador longe da cama, naquele local a uma distância suficiente para acordarmos no caminho, mas perto quanto basta para o conseguirmos ouvir. No Luxemburgo, nem chego a dar-lhe aquele prazer que eu acredito que ele tem em arrancar alguém assim, à força, do seu mundo paralelo. Se o despertador fosse uma pessoa, ia ser aquele tipo que todos conhecemos e que parece ter um enorme prazer em estragar as grandes histórias e em repor a verdade nas melhores piadas. E, claro, ia esquecer-se sempre de levar moedas para o café.

Neste quarto de quatro por quatro, na verdade, o despertador existe, mas não vem na forma de som polifónico dos novos tempos. Com duas janelas sem persianas, a luz do sol nascente invade até a mais profunda escuridão por onde os meus sonhos possam andar. O despertar é obrigatório, intenso mas, tal como o outro, doloroso. Torna-se ainda mais aniquilante quando me apercebo, entre olhos semicerrados e interjeições, que não irei encontrar nenhum botão para me salvar deste confronto. Luz a mais para vontade a menos.

Passada esta batalha que todos os dias me leva à incontornável derrota, sigo para o segundo despertador. Este, bem mais saboroso. O café. Aqui, todos os “não portugueses”, se interrogavam acerca do porquê de ir tomar um café ao café e porque não da cafeteira de casa. Enfim, alguém que ousa comparar a intensidade e resultado de um expresso com um bocado de água pincelada com café não merecia resposta. De manhã, toma-se café “a sério”. À tarde também e à noite talvez.

Como em muitos outros dias dos últimos meses, entrei no Canela e imediatamente após o bom dia inicial, a dona, com um sorriso tipicamente português, apressa-se a confirmar o que sabia de antemão “um cafezinho?”. Sim, claro que sim. Durante estes meses, trocamos pouco mais do que estas parcas palavras. Ela, mais um dos inúmeros portugueses que veio para Esch há já alguns anos e por cá foi ficando. Eu, um português que aqui veio parar por acaso e com data marcada para o regresso. Por falar em regresso, esta foi a última vez que passei a porta deste estabelecimento onde, seja a que hora do dia for, ouvem-se os últimos hits latinos.

Mais à frente, depois da costureira portuguesa e da padaria do mesmo país, encontra-se o Boguinhas. Foi o primeiro café onde entrei desde que cá estou. Poucas vezes lá voltei. Paredes coloridas e forradas com bandeiras de Portugal e, para quem ainda não tenha entendido em que território está, a música não deixa margem para dúvidas. Das colunas, mais alto do que seria recomendável, faz-se uma revisão diária dos festivais da canção na era “pré Salvador Sobral”. Num papel escrito à mão, anuncia-se que têm bifanas. Certamente pode-se petiscar muitas mais coisas, mas as bifanas são a estrela da companhia. No primeiro dia, disse para mim mesmo que iria voltar para as provar. Vou-me embora sem o fazer.

Entrando no campo da gastronomia, há algo de que não terei de matar saudades quando regressar, os Pastéis de Nata. Em poucos sítios no mundo se deve ter levado tão à letra a sugestão do antigo Ministro da Economia como no Luxemburgo. Aqui e ali, é demasiado fácil encontrar este doce que, antes de vir para cá, não sabia ser um exclusivo de Portugal. Habituei-me a ir à Welcome. Apesar do nome, a decoração com bancos almofadados e as vitrinas de doces não enganam. Está-se em mais um dos inúmeros recantos portugueses de Esch. As Natas, essas, são melhores do que muitas que vou comendo no país de origem. O segredo, disse-me a senhora que me atendeu na minha primeira visita, é que são feitas ali mesmo e não atravessam a Europa em sacos congelados. Fiz questão de ir lá despedir-me, mas voltei desconsolado. Depois do primeiro, quando me preparava para a segunda rodada, tinham acabado. Que ultraje! Não devia ser permitido os Pastéis de Nata acabarem. Fica para a próxima e essa, será já em Portugal.

Se já passasse das cinco, ainda ia à casa do Leixões. Local onde, sem falhas, me sentava cinco minutos antes de qualquer jogo de futebol que quisesse ver. Foram muitas visitas. Mas só abre às cinco e a essa hora já estarei a caminho da terra do clube que dá nome à casa.

Para finalizar, um dos raros locais que tem menos tempo de Luxemburgo do que eu. O Escher Kafé abriu quando eu já estava cá e, desde então, passou a ser o meu local habitual para diversas atividades. Estudar, ler, sair depois de jantar, conversas com amigos, cerveja e café. Tentava sempre a sala pequena decorada com livros e com apenas uma mesa. Não fosse o barulho vindo da sala principal e julgava-me no escritório de casa. As cervejas eram várias e muito pouco ou quase nada faria crer que era um café português. Só na segunda visita percebi que, apesar do estilo alternativo, estava realmente em mais uma embaixada do meu país. Um sítio raro em Esch, a fazer lembrar os muitos locais que nos últimos anos foram abrindo de esquina em esquina pela baixa do Porto.

Depois do último trago da cerveja que bebia regularmente, estava na hora de partir. Saí dos sítios com um “até amanhã” que, sabia eu, não iria concretizar-se. Nesse amanhã, eu estaria em casa. De regresso a Lavra e às pessoas com quem sempre estive. Nestes locais, o dia iria nascer como tantos outros. As rotinas iriam repetir-se sem mim.

Saí de Esch-sur-Alzette com uma sensação diferente de todos os outros sítios onde estive. Geralmente, parto a pensar que, um dia, estarei de volta. Aqui, sinto que nunca mais irei voltar. Foi o acaso que me trouxe e a sensação com que vou é que não me trouxe só a mim. Os portugueses em Esch vieram todos com a mesma boleia. Certamente, ninguém teria o sonho de viver nesta cidade na fronteira entre o Luxemburgo e França. Todos e provavelmente sem nenhuma exceção, vieram aqui parar sem querer. Uma curva da vida que os guiou até aqui.

Em relação a mim, será tão provável regressar a Esch-sur-Alzette, como voltar a acordar antes do despertador tocar.

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