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Como que num êxtase místico: Krack des Chevaliers, Síria

No meio de uma viagem tão recheada de ruínas romanas, a ida a um castelo medieval, baluarte mítico das Cruzadas, em nada me cativava. Estávamos no fim do Verão de 2007, longe de pensar que a Síria viria a mergulhar numa horrenda, longa e insolúvel guerra.

Decorria um quase-Outono igual a tantos outros, e entre réstias fortes de sol e lufadas agrestes de vento, lá saímos do autocarro, com a vontade de descobrir alguma emoção, algo que me retirasse da letargia em que me colocava a ideia de entrar num tema que ainda hoje tantos traumas traz ao mundo.

O edifício é, realmente, espantoso. A rampa interior que nos conduz através do miolo das muralhas afirma-se para o visitante como uma elegante barreira iniciática que subimos com grande prazer, sempre munidos de um pequeno sorriso irónico nos lábios, criado pelo espanto de se estar a ser engolido por um mo(nu)mento que antes nos repulsara.

Neste ponto inicial da visita, já nos perseguiam – mais que acompanhavam – uns 3 ou 4 rapazes, com não mais de 12 anos. Esperavam que, mais tarde ou mais cedo, alguma moeda lhes caísse nas mãos. Brincavam, gesticulavam, corriam, importunavam, infatigáveis nas tarefas típicas desta idade e neste contexto.

E sim, de monumento rapidamente passámos, não a um momento, mas a um sem número de momentos, todos eles ímpares, únicos. Guardarei sempre com muito cuidado a fotografia que me foi tirada no topo do torreão mais alto do castelo. A não-sei-quantos-metros-de-altura, sem nada no horizonte que rivalizasse em medida e no respeito que este incutia, o vento quase não me deixava ficar de pé. Muito mais despenteado que o normal, abri bem largo os olhos para ver em todo o círculo em redor. Pareciam mesmo os ventos chamados por Ares para a dura refrega nas portas de Tebas ou da Ílion de grossas muralhas.

Mas o momento mais doce, mais inesperado, mais intenso, veio no interior do que deve ter sido o refeitório dos cavaleiros hospitalários, transformado em capela depois de um terramoto por volta de 1170. Já depois da conquista no século XIII, islamizado o espaço, um mirab foi construído numa das paredes aproximadamente virada para Sul, na direcção de Meca.

Não sei se os miúdos não deram por que entrámos naquele espaço – realmente, éramos apenas uns três os que tínhamos saído do grupo para melhor explorar o castelo. O silêncio, matizado com os zunidos sibilantes do vento nas janelas góticas, dava uma aura de profundo mistério ao local.

Na simples contemplação do quase nada, irromperam na galhofa os pequenos. Um dos mais velhos de nós ainda lançou um “sacanas” para o ar, como que enxotando uma nuvem de mosquitos que descobriram que a luz se tinha acendido na calma noite. Íamos embora, com desalento, quando um deles me puxou pela mão. Apontou para o mais pequeno que se posicionava, em passos lentos, junto ao nicho de oração. Parámos.

Não sei se o que aquela criança cantou estava correcto e se a pronúncia do Alcorão era respeitada. Apenas sei que ficámos deslumbrados. Calados. Aterrados. Todo o tempo do mundo parou enquanto aquela criança cantou, de mãos colocadas como mandam as regras junto aos ouvidos, encostado ao nicho virado para a Cidade Santa. Fiquei pequeno, inútil, incapaz de qualquer pensamento ao tomar noção da minha pequenez e da inutilidade de uma fortaleza tão inexpugnável perante aquelas notas, aqueles sons que só podiam ser divinos.

Não sei se era disto que Ulisses tinha medo ao amarrar-se ao mastro do navio, aquando da visita esperada das sereias. Sem ardis, ao contrário do herói dos mil estratagemas, deixe-me ir. Vivi, naquele momento, dos minutos mais intensos da minha vida.

Os outros dois rapazes esperaram junto a nós que o canto deixasse de ecoar naquelas paredes de metros de espessura. Também o respeito os obrigou a não avançar nem para a brincadeira, nem para o peditório que seria o corolário lógico da cena.

Num inglês já muito praticado, pediram, mais uma vez, as “coins” que reclamavam desde a subida relatada nos primeiros parágrafos. Atraídos pelo melódico declamar, já se tinham juntado a nós mais uns cinco ou seis companheiros. Todos acabámos por dar, sem pensar uma única vez, uma nota, e não das mais pequenas que tínhamos nos bolsos.

Eles ficaram radiantes. Nós também, apesar de não saber se eles consciencializaram exactamente o sentimento que em nós provocaram.

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