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Maio de 68 revelou o que era a emigração portuguesa e José Vieira filmou-a

 O “medo” de uma guerra civil, sentido por uns, e a oportunidade para denunciar o fascismo em Portugal, sentido por outros, fizeram do Maio de 68 “um pretexto” para o realizador José Vieira falar da emigração portuguesa em França.

Das poucas memórias do bairro de lata de Massy, quando tinha 11 anos, às entrevistas que realizou com emigrantes portugueses, José Vieira fez dois filmes: “Le Drôle de Mai, Crónica dos Anos de Lama” (2008) e “A Primavera do Exílio” (2011), duas faces de um mesmo espelho temporal, o de Maio de 68.

Para o cineasta, o Maio de 68 “revelou o que era a emigração portuguesa”, e a sua ideia inicial era fazer um só filme sobre “a instalação das pessoas” em França, depois de ter retratado “a partida, a travessia e a chegada a França”, no documentário “A Fotografia Rasgada” (2002).

“Os acontecimentos de Maio de 68 vão mostrar como são as pessoas. O medo que vão ter vai fazer-nos compreender de que país vêm e sob que ‘chapa de chumbo’ estiveram durante séculos. Maio de 68 é um pretexto. Não fiz um filme sobre o Maio de 68. Claro que falo de Maio de 68, mas, em todo o filme, as pessoas falam da sua vida em França”, explicou o cineasta, a propósito de “Le Drôle de Mai”.

Filmado na aldeia portuguesa de Malcata, de onde eram oriundas “mais ou menos metade das pessoas do bairro de lata” de Massy, “Le Drôle de Mai” conta com testemunhos dos emigrantes que, na sua maioria, viveram o Maio de 68 “como um momento de angústia”.

“As pessoas tinham muito medo de ser expulsas de França. Havia o medo do comunismo, claro, e aquela ideia de que os comunistas iam tomar o poder e pôr os emigrantes todos fora. Havia uma confusão ali total. Dizia-se coisas incríveis nos bairros de lata”, continuou o autor que, nos últimos anos, tem dedicado a sua filmografia à emigração portuguesa em França.

Dessa altura, 1968, em que era apenas uma criança, José Vieira lembra-se de “praticamente nada”, a não ser de “uma espécie de pânico e pessoas que foram embora para Portugal”, com moradores do ‘bidonville’ que “trabalharam dia e noite, para trás e para diante, a levar sobretudo pessoas até à fronteira, porque havia a greve geral em França”. Depois, havia “uma certa angústia em casa”.

“Soube mais tarde que o meu pai estava convencido de que aquilo ia acabar numa guerra civil, queria que a gente fosse para Portugal e queria cá ficar [em França] sozinho, porque tinha medo pela família. Mas a minha mãe não quis ir para Portugal”, contou.

No filme, é abordado, precisamente, o regresso a Portugal de muitos emigrantes, um regresso alimentado pela “tentativa de meter medo às pessoas”, por exemplo, da parte de várias entidades, como a ANPF, associação de portugueses em França, “controlada pelo Estado português e os consulados”, que “tentaram organizar autocarros para as pessoas se irem embora”.

A este contexto somava-se a “memória coletiva” de oriundos da aldeia de Malcata, cujos familiares tinham sido expulsos de França, nos anos de 1930, e a própria incompreensão do que era o Maio de 68, por pessoas recém-chegadas de uma ditadura, como era a portuguesa, e que não falavam francês.

“O António, no filme, explica muito bem isso. As pessoas estão alienadas pelo regime [ditatorial], pela Igreja, pelo Estado, pela ideologia salazarista. Não se faz greve, nasce-se pobre e é natural ser pobre numa espécie de determinismo social. Muitas pessoas chegam aqui e tomam consciência que se pode falar, pode-se dizer o que se pensa, mas para isso é preciso falar francês”, descreveu.

No segundo filme, “A Primavera do Exílio”, José Vieira aborda “a dimensão um pouco esquecida” do militantismo português, no Maio de 68, através dos testemunhos de três pessoas que participaram ativamente no movimento, e que denunciaram o fascismo português: o compositor José Mário Branco, o ilustrador e cartoonista Vasco de Castro e o sociólogo Fernando Pereira Marques.

“Para as pessoas que vieram para França, por razões políticas, que estavam claramente contra a guerra colonial, o Maio de 68 foi um momento formidável para fazer conhecer as lutas que travavam contra o regime em Portugal, para fazer conhecer a luta contra a guerra colonial, para fazer conhecer que havia uma repressão terrível em Portugal”, sublinhou.

O cineasta acrescentou que, “quando começou a greve geral em França, formaram-se nas universidades comités de trabalhadores-estudantes, e o primeiro praticamente a ser constituído foi o português”, pelo que quis mostrar esse ativismo político, que foi “um aspeto muito importante” para si.

A sua “tomada de consciência política vem daí”, desse ambiente militante português em França, que fez entrar em sua casa álbuns de Luís Cília e de José Mário Branco, os mesmos “discos proibidos” que as suas irmãs, mais velhas, escondiam no motor do carro, quando passavam a fronteira nas férias de regresso a Portugal.

“É verdade que muitas pessoas foram para Portugal no 25 de Abril, pelo menos os líderes, e deixaram de ser emigrantes. Mas os franceses, aqui, veem a emigração como sendo de origem camponesa, esquecendo que, em Paris, em Grenoble, em Toulouse, por todo o lado em França, havia associações de pessoas mais políticas, jornais de desertores e opositores ao regime”, lembrou.

Quanto ao legado de Maio de 68, José Vieira continua a acreditar que foi “uma revolta muito importante”, nomeadamente no que toca aos direitos dos emigrantes, porque “é a partir de Maio de 68 que há uma tomada de consciência de que há pessoas que estão cá [em França], e que não têm os mesmos direitos”.

“Toda a utopia que trouxe Maio de 68, para mim, continua. A utopia de um mundo melhor, sem exploração, de um mundo de justiça, simplesmente. Se não temos utopias, não vejo como podemos avançar”, concluiu o realizador de “A Ilha dos Ausentes” (2016) e de “O País Aonde Nunca se Regressa” (2005).

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