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“Caderno de memórias coloniais” de Isabela Figueiredo

Ficha técnica

Título – Caderno de Memórias Coloniais

Autora – Isabela Figueiredo

Editora – Angelus Novus Editora

Páginas – 160

Opinião

A última leitura de março foi, tal como a sua antecessora, uma recomendação. Assim, quando fui à biblioteca fornecer-me de leituras femininas acabei por trazer mais uma, pois “great minds thinke alike” e nunca me arrependo de seguir as tuas recomendações, Paula!

Como sabem, gostei imenso de O retorno, de Dulce Maria Cardoso e não me importei nadinha de voltar a territórios africanos (bom… só assim irei a África, em viagens literárias, pois só de pensar em lá pôr os pés, fico com taquicardia, mas isso são pormenores que ficarão para outra altura…) e recuar aos anos 60 e 70 para conhecer outra família, outra história de gente que teve que deixar para trás uma existência abastada numa colónia e fugir para a metrópole após a independência de Moçambique.

Esta, ao contrário da história que preenche a narrativa de O retorno, é a história da própria autora, do seu nascimento em terras moçambicanas, da sua infância e adolescência passadas em Lourenço Marques (atual Maputo) e da vinda para Lisboa por uma questão de sobrevivência. Nestes Cadernos de memórias coloniais, que Isabela Figueiredo sentiu que tinha que escrever e publicar, ela expõe, numa linguagem crua, gráfica e ácida, o que recorda desses tempos. Mas não é apenas uma mera exposição descritiva e cronológica. É muito mais do que isso.

O livro está dividido em três partes – o caderno das memórias, uma compilação de cinco posts que a autora publicou no seu blogue e uma entrevista à mesma e que é um excelente complemento à leitura do Caderno. Vou centrar esta opinião na primeira e na terceira partes, já que foram as duas que ficaram comigo e que são o perfeito exemplo da qualidade exímia da escrita de Isabela Figueiredo.

Caderno é autobiográfico e por isso ainda mais avassalador, pois sentimos, desde as palavras iniciais, que Isabela precisou de abrir a alma, escarafunchar feridas pessoais e histórico-sociais para fazer justiça a si mesma, para ajustar contas com o homem que mais amou e odiou na vida e para abordar sem filtros, com uma verdade que não é bonita, uma época da nossa História recente que os politicamente corretos nos pedem para guardar com discrição numa gaveta.

O meu pai, a quem coube a missão de electrificar a Lourenço Marques dos anos 60, nunca quis empregados brancos, porque teria de lhes pagar os olhos da cara.”

O negro estava abaixo de tudo. Não tinha direitos.”

Esta era a ordem natural e inquestionável das relações: preto servia branco e branco mandava no preto. Para mandar, já lá estava o meu pai; chegava de brancos!

Que aquele paraíso de interminável pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra vermelha era um enorme campo de concentração de negros sem identidade, sem a propriedade do seu corpo, logo sem existência.”

A metrópole era suja, feia, pálida, gelada. Os portugueses da metrópole eram pequeninos de ideias, tão pequeninos e estúpidos e atrasados e alcoviteiros. Feios, cheios de cieiro, e pele de galinha, as extremidades do corpo rebentadas de frio e excesso de toucinho com couves. Que triste gente! Divertiam-se a mofar connosco, atirando-nos à cara que estava difícil, pois estava, que aqui não havia pretinhos para nos lavarem os pés e o rabinho, que tínhamos de trabalhar, os preguiçosos de merda, que nunca fizeram a ponta de um corno pela vida, que nunca souberam o que era construir uma vida e perdê-la, os tristes, os pequeninos, os conformados. Sabiam lá eles o que eram os pretos, e o que éramos nós e o que tínhamos acabado de viver, cobardes filhos de uma puta brava.

Os desterrados, como eu, são pessoas que não puderam regressar ao local onde nasceram, que com ele cortaram os vínculos legais, não os afectivos. São indesejados nas terras onde nasceram, porque a sua presença traz más recordações. Na terra onde nasci seria sempre a filha do colono. Haveria sobre mim essa mácula. A mais que provável retaliação. Mas a terra onde nasci existe em mim como uma mácula impossível de apagar. Persigo oficiais marinheiros que trazem escrita, na manga do casaco, a palavra Moçambique.”

As cento e sessenta páginas que li em dois dias são, como se pode comprovar pelos excertos que aqui deixo, uma bofetada dolorosa e muito bem dada. A ela não escapam colonos, retornados e nem a gente tristinha da metrópole. E tão-pouco escapa o pai de Isabela, o homem que ela mais amou e mais odiou, o homem que a levava para todos os lados, que a encavalitava nos seus ombros, que a deixava provar uns resquícios da sua bebida alcoólica e o homem que constantemente insultava e explorava sem escrúpulos os pretos. Um pai terno, brincalhão, mas um homem violento, preconceituoso e racista. Um homem que amou desmedidamente e ao mesmo tempo odiou.

Foi uma leitura desgastante, mas não a trocaria por outra. Admiro ainda mais a autora que já conhecia da obra A gorda. Admiro a sua frontalidade, a sua valentia e a sua vontade de contar a verdade, a sua verdade, mas que acaba por ser a verdade de muitos outros. Tenho consciência de que deve ter sido horrível a luta que travou consigo mesma quando iniciou este projeto que escancara as portas da sua vida e dos seus familiares a quem queira entrar nelas. Por isso, como leitora, tenho apenas que lhe agradecer (e muito), pois nunca soube de perto como terá sido a fuga de uma colónia, muitas vezes apenas com a roupa do corpo e pouco mais, e lendo o seu Caderno consegui compreendê-lo melhor, aprender e crescer como pessoa. Obrigada mesmo, Isabela!

Caderno de Memórias Coloniais foi reeditado pela Editorial Caminho em 2015 e merece que o leiam, pois não se vão arrepender! Eu recomendo-o vivamente!

NOTA – 09/10 (na minha opinião, os 5 posts que compõem a segunda parte da obra são dispensáveis, pois pouco ou nada têm a ver com a temática colonial…)

Sinopse

«O Caderno de Memórias Coloniais relata a história de uma menina a caminho da adolescência, que viveu essa fase da vida no período tumultuoso do final do Império colonial português. O cenário é a cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, espaço no qual se movem as duas personagens em luta: pai e filha.» Isabela Figueiredo, in «Palavras prévias»

 

in O sabor dos meus livros

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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